sábado, junho 25, 2022

A nostalgia está a passar por aqui

 



O tempo avança a passos largos. No outro dia estava a ver os feriados do ano. Pensei que Abril era bom, uns feriadinhos para amenizar a dureza dos dias. Maio seria uma estopada, uma secura, mês longo e chato. Depois viria Junho, um apetite. Mais uns feriadinhos bons. Afinal passaram num instante e daqui a nada Junho terá chegado ao fim e estaremos a entrar na segunda metade do ano. Como foi que, de repente, meio ano praticamente já se foi? Não sei explicar, para mim é mistério.

Estava a ler aquilo dos carros a combustível. 

Bem sei da poluição e de tudo isso. Mas não há carregadores públicos que cheguem, são demorados no carregamento, os carros totalmente eléctricos têm pouca autonomia, os híbridos praticamente nenhuma. Deviam ter um tejadilho e capot em painel solar e uma turbina para aproveitar o vento natural mais o gerado pela movimentação. Isso sim. Viaturas auto-sustentadas. E, se calhar, um dia para lá caminharemos. Costumo dizer que adiro ao cem por cento eléctrico no dia em que dê para a gente tirar a bateria do carro como dantes havia quem tirasse o rádio do carro para não o roubarem. Coisa pequena que se puxasse por uma pega e se levasse, na boa, na ligeireza, para carregar em casa, quase como se carrega a bateria da máquina fotográfica ou o telemóvel. Se tivesse uma autonomia boa e desse para carregar em casa, na boa, rapidinho, e desse para termos no carro uma carregada, de reserva, aí, sim, eu estava nessa. 

Mas estava nisto e a pensar que, com a pressão para abandonar o diesel e a gasolina, qualquer dia, quem queira vender um carro 'à moda antiga' vai receber uma tuta e meia por ele ou, provavelmente, vai acabar por ter que pagar por ele, para o transformarem em sucata. Li que António Costa, para dar tempo a este período de transição, quer aboli-los só lá para 2040. Pensei: 'Vendo bem as coisas uns 18 anos é um período razoável para quem não tem dinheiro para grandes investimentos...'. E, então, de repente, caiu-me a ficha. Fiz as contas. E, não vou esconder, foi com um certo desconforto que me ocorreu que sei lá se estou viva daqui por 18 anos. Ou, se estiver viva, se ainda conduzirei. Pensei que incompreensivelmente, o tempo tem passado tão depressa que, não tarda, começarei a sentir o fim a aproximar-se, começarei a ver de perto as limitações que certamente terei.

Li que a Isabelle Adjani sente a nostalgia de pensar no tempo que lhe resta. Fez-me alguma impressão. Era tão jovem e bonita, ela. Agora pensa nos anos de vida que lhe restam. O tempo tem estado a passar também por ela.

Ontem passei ao lado de uma urbanização onde morava um colega de longa data. Daquelas pessoas que nunca se metia em sarilhos, sempre boa onda, sempre na boa com toda a gente. Podiam chover raios e coriscos que nunca choviam para o lado dele, para ele sempre bom tempo. Toda a gente o respeitava e gostava dele. Ansiava pela reforma mas trabalhou dedicadamente até ao último dia. Sempre jovial. Dizia-se que o bom feitio o fazia manter-se jovem. Quando se reformou, manteve a ligação e a amizade com os colegas. Semanalmente ia almoçar com o pessoal. Tinha finalmente tempo para fazer caminhadas, para ir ao ginásio. Estava mais magro, estava optimista como sempre  o conheci. Tinha planos, tinha mais tempo para a família. Até que um dia, pouco tempo depois, nem sei se um ano, uma colega me ligou a perguntar se eu já sabia. E eu não sabia nem queria acreditar. Ainda hoje me custa a acreditar que tenha partido assim tão abruptamente. Quando passo ali, penso que era ali que ele vivia, um sítio com muitos espaços verdes, coisa que muito lhe agradava e por onde dava belas caminhadas.

No outro dia, foi outra. 

Um colega muito maluco, histriónico, bon vivant, viajado, namoradeiro, uma força da natureza. Vive numa casa grande, antiga, um solar. Dantes ali era a periferia da cidade. Agora está dentro da cidade. Tem uma outra casa nas Beiras, uma grande casa de pedra no meio de um grande olival. Reconstruiu-a, modernizou-a. Apesar de ser como é, é também um homem de família. Filhos, noras, netos. Sempre em combinações com a mulher, ou eram obras em casa, ou coisas com os filhos ou com os netos, ou eram idas à casa de pedra, ou coisas com os cunhados, ou projectos na câmara. No meio da maior maluqueira -- anedotas, lembranças brejeiras das suas vivências -- atendia a mulher e, mudando rapidamente de registo, entrava naquelas inúmeras combinações.

Deixou de trabalhar antes da idade da reforma, já tinha o que queria, agora queria era gozar a vida. Pois. No outro dia, ligaram-me. Já sabia que lhe tinha morrido a mulher? Fiquei siderada. Lembrei-me logo de a ver com ele à hora de almoço. Ele muito bem comportado ao pé dela. E agora isto. Dizem que ela estava muito bem e, do nada, de repente, tinha-se apagado. Ele nem tinha dado por isso. Não o imagino sozinho. Aquele permanente vaivém. Como será a vida dele doravante sem a sua companheira?

Ninguém sabe. Mas, à medida que o tempo passa, mais nos aproximamos do fim.

Lembro-me do dia em que, tendo eu uns trinta e poucos, o que era o presidente da empresa foi ao meu gabinete despedir-se. Numa daquelas reviravoltas, o conselho de administração tinha sido mudado. Não se importava, ele. Tinha recebido uma avultada indemnização, tinha com fartura para viver até à reforma, estava contente. Naquela altura os tempos eram conturbados. Os ventos políticos sopravam num sentido diferente ao dele (e ao meu), a gestão do Grupo estava a ser varrida e uma onda de yuppies convencidos e broncos começava a chegar a todo o lado. Ele partia com alívio, não suportaria aquilo. Eu não via como poderia suportar. Abraçámo-nos e eu disse: 'Como o invejo, quem me dera estar no seu lugar'. Ele disse-me: 'Oh menina, não diga isso, não me inveje, não vê que tem uma vida inteira pela frente e eu não...?'

Não me esqueço disso. 

O tempo passa e tanta gente vai também ficando para trás. 

Enquanto isso, vou respirando o ar puro desta terra em que o céu me envolve, onde a luz torna douradas as árvores ao fim da tarde, em que os pássaros têm cores e cantos maravilhosos. E a ver se este sábado consigo voltar a pegar num livro.

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Jesuíta Barbosa (o Jove do Pantanal) recita "Borboletas" de Manoel de Barros 


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Pinturas de Kuroda Seiki na companhia de Maria Bethânia que interpreta Amor de Índio 

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Desejo-vos um dia bom
Saúde. Poesia, Sabedoria. Paz.

2 comentários:

Pôr do Sol disse...

Habituei-me a compararmo-nos às flores.

Brotam, abrem, com vaidade alegram a vida dos outros e quando damos por nós... murchamos. A agua que nos alimenta vai ficando insuficiente e os ventos levam-nos as pétalas, a beleza a frescura.

Outras, ainda viçosas, um pé desastrado derruba-as não tendo tempo de animar ninguem.

As estações mudam, chegamos à hora de dar lugar a outras flores, que com o mundo, ele a envelhecer tambem, não terão vidas longas e bonitas.

Mas teimam em nascer e até entre pedras brota um malmequer.

É isso, quando pensamos muito, bate a nostalgia.

Um beijinho, tudo de bom para todos os seus, viva a alegria do seu cãopanheiro com saude e paz. Bom fim de semana

Um Jeito Manso disse...

Olá Pôr-do-Sol,

É isso mesmo. Nestas coisas o melhor é a gente nem pensar muito, deixar-se ir vivendo, aproveitando o sol, a chuva, o vento, o calor, o frio. Tudo faz parte e tudo é bom para as flores se desenvolverem e nos maravilharem com a sua cor, perfeição e perfume.

Mas, às vezes, mesmo sem querer, vem uma ideia que espreita para nos lembrar que estamos de passagem. Mas que seja bom enquanto durar, não é?

Beijinhos para si e para a sua família, Sol Nascente.