segunda-feira, março 14, 2022

Chocada...?

 

Ao ver a fotografia do William Hurt no Der Terrorist fiquei admirada e, ainda mais, quando vi aquela coisa definitiva que é o intervalo da vida fechado com o ano em que estamos. William Hurt chegou ao fim da sua vida em 2022. 

Fiquei chocada.

De manhã, no parque infantil, o menino mais novo todo contente por ter conseguido uma proeza que ele e eu julgaríamos impossível, disse-me. 'Foi uma surpresa ter conseguido. Para ti também foi?'. Sorrindo, orgulhosa dele, disse que sim. Ele, então, acrescentou. 'Eu acho que estou chocado. Tu também?'. E eu: 'Eu também' e não lhe disse mas pensei que estava também 'chocada' com a riqueza do seu vocabulário.

Há uns fins de semana, quando estávamos longe de imaginar a chacina que a Rússia iria levar a cabo na Ucrânia, tínhamos todos ido ver o irmão jogar num pavilhão. Fui no carro com ele, com a tia e com a irmã. Os pais já lá estavam com os primos, tinham ido antes com o menino atleta. Quando lá chegámos, muita gente nas bancadas, eu disse: 'Onde será que eles estão?. Resposta dele: 'Estão lá em cima. Eu acho que estão... algures.' Também não disse nada mas fiquei igualmente 'chocada'. Algures? Uma criança tão pequena a sair-se com palavras sempre tão apropriadas.

Ele ainda as usa de uma forma inocente, sem receio de as usar de forma indevida, sem se questionar se as usará na gradação certa, ajustada às circunstâncias.

Comigo acontece-me o oposto: ocorre-me uma palavra e, com alguma frequência, fico na dúvida sobre se será apropriada. Não estarei a carregar no fatalismo? Não estarei a ser demasiado ligeira? Não estarei a banalizar o seu uso?

Escrevi que me senti chocada ao saber da morte do William Hurt. E não sei se deveria ter usado esta palavra. William Hurt estava longe de ser daqueles actores que, só por si, me faziam ir ao cinema. Não sabia dele há alguns anos e, no entanto, não tinha dado pela sua ausência.

Mas, ainda assim, ele era um dos amigos de Alex e, só por isso, era uma presença na minha memória. Era, não: é. É uma presença na minha memória. Uma presença silenciosa, com um sorrido contido. 

Uma sensualidade pouco exuberante mas garantida.

Relembro-o naquelas sensuais noites de calor, verdadeiramente escaldantes, com a Kathleen Turner. 


A Kathleen, na altura uma sedutora e uma das vozes mais sexy de Hollywood, está agora irreconhecível. E William Hurt morreu. Ou a vida corre depressa demais com um efeito erosivo sobre algumas pessoas ou extingue-se antes de tempo.
E, uma vez mais, ao escrever isto, hesito. Estarei a usar as palavras justas? Como usar estas palavras nestes dias de hoje, em que assistimos, em directo, a um cenário de guerra que não é ficção mas uma inverosímil realidade.
Relembrei-o naquela comédia ligeirinha e agradável com a Juliette Binoche. Lembro-me de ter ido ver este filme e de termos saído de lá a dizer que não era nada por aí além mas que era agradável, bem disposto, romântico. 


Relembro-o também n'O beijo da mulher aranha. O low profile que, em geral, mostrava esteve ao serviço de uma sensibilidade comovente -- o homossexual que era tão homem quanto o seu viril companheiro de cela, ambos humanos e vulneráveis nas suas dúvidas e carências.
E, uma vez mais, ao escrever comovente, penso que ultimamente tenho usado também bastante esta palavra. E, no entanto, as escalas e as envolventes não poderiam ser mais díspares. Posso usar a mesma palavra para me referir a um argumento ou a uma representação, num filme, e à coragem ou ao sofrimento, muito reais, de pessoas vítimas de uma guerra atroz, sangrenta?

E agora William Hurt está morto. Raul Julia também, há bastante tempo. E Sonia Braga, hoje em dia, já não parece a Mulher-Aranha, muito menos a Gabriela que, apesar de a preto e branco, enchia as casas portuguesas ainda a habituarem-se à vida em democracia, com a cor da sedução, do cravo e da canela.



Antes de, aqui, à noite, ter ligado o computador e a televisão, o meu domingo foi muito bom. Estive com a família e, felizmente, estão bem, bem dispostos. 
A paz é daqueles bens que todos deveríamos poder dar por adquirido em todo o lado e para todo o sempre. Mas, infelizmente, não é.
Os meninos brincaram, felizes. Jogaram à bola, jogaram ténis, jogaram no telemóvel, conversaram. A guerra para eles é qualquer coisa de incompreensível pois, para eles, até aqui, era coisa de filmes, de jogos. Ao almoço, perguntei-lhes o que acham. Têm opiniões já bem construídas. Querem a paz, claro. Mas pareceu-me que acreditam que as coisas se haverão de resolver. E eu também acredito que tudo se há-de resolver. Acredito que, no meio da barbárie, da destruição sem trégua, alguém há-de estar já a preparar a interrupção destes crimes sem perdão. E acredito que, quando isso acontecer, será para bem de todos. Não me sentirei chocada.

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Desejo-vos uma semana boa
Boas notícias. Paz. Saúde.

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