Estou a ver um belo documentário na 2, Fevereiros, em que Bethânia, Caetano e Mabel, manos tranquilos e felizes, falam do seu contacto com a religião. Mas, sobretudo, fala-se aqui da íntima ligação de Bethânia com a religião, uma relação telúrica, íntegra, visceral, mágica. É uma festa a religião contada por eles e tão sentida por ela.
Bethânia fala de como subiu degrau a degrau até chegar ao contacto com a Senhora, coroando-a. Fala da primeira comunhão, da alegria de festejar o contacto com o divino. E fala do candomblé, de desfile, da dança, do canto, da reza, da partilha, do afecto, fala de curtir a presença dos santos e dos espíritos.
Já aqui contei e vou repetir-me -- para mim a religião nunca foi festa e alegria.
Havia uma capela bonita num lugar um pouco mais isolado que ficava entre o bairro onde morava uma das minhas avós e o bairro dos meus outros avós. Ficava também perto da escola. Era na escola que tínhamos a catequese.
Em Maio, a capela era toda decorada com flores e. num certo domingo, era dia de festa, o dia em que havia a primeira comunhão para os mais pequenos e a comunhão solene para os crescidos.
Isto era precedido de um desfile, na rua, dos meninos abrangidos e não me lembro se também, talvez atrás, dos respectivos irmãos ou pais. Disso não me lembro bem, tenho apena uma vaga ideia da minha mãe não estar longe..
Lembro-me que, antes da minha comunhão, eu ia à frente, de anjinho. Disso eu gostava.
Gostava muito do cheiro fresco das flores, gostava de estarmos todos vestidos de branco, gostava dos cânticos religiosos que ecoavam pelas ruas e depois na capela. As vozes das crianças e as vozes serenas dos adultos, tudo era muito límpido e claro.
Como anjinho, eu, que tinha cabelos compridos, louros, ondulados, usava, em volta da cabeça, uma grinalda de florzinhas brancas e umas asas enormes saindo das costas do vestido, que era comprido, até aos pés. Já contei que tenho uma fotografia da qual gosto muito: eu e outras duas meninas, luzindo ao sol de Maio, eu, com os cabelos esvoaçando, eu, rindo. Uma festa. As asas eram pesadas e a grinalda não prendia bem os meus cabelos mas eu não queria saber disso. Gostava era de andar naqueles festejos brancos.
Mas pior, pior, pior foi quando, nos ensaios, resolveram dar uma hóstia para experimentarmos. Avisaram que não era para mastigar, que era corpo de deus. Acontece que aquilo se me colou ao céu da boca. Fiquei naquela aflição, sem saber como dar a volta ao corpo de deus. Pôr o dedo na boca para deslocar Deus do céu, isso, ainda menos. Portanto, fiquei num sufoco. Não falava, mal me mexia. Claro que, perante tal, logo a catequista e as professoras perceberam que algum problema havia comigo. Às tantas rompi num pranto. Lá me explicaram que... bem... aquilo não era exactamente o corpo de deus. Não devem ter dito que era mito ou metáfora mas descansaram-me, que tentasse dar a volta com a língua, que bebesse água para deus amolecer, que não estivesse tão apoquentada, E a coisa lá se resolveu. Ensinaram-me truques para vezes futuras e perdi o medo. Mas percebi que os tempos de anjinho, os tempos da inocência em que não tinha que me confessar e comungar, tinham acabado.
Não estou certa mas acho que, para a primeira comunhão, aos seis anos. devo ter levado o vestido que usei no casamento dos meus tios, um vestido de renda branca, sainha rodada, talvez o cabelo apanhado em cima com florzinhas brancas em volta, sapatinhos brancos. É assim que me lembro de mim mas, na minha cabeça confunde-se ir levar as alianças ao altar ou ir receber a hóstia na primeira comunhão.
Não faço ideia qual o simbolismo da comunhão solene mas desse dia nada guardei.
Creio que a seguir era o crisma mas nessa altura já tinha adquirido voz e não quis. O meu pai deve ter dito à minha mãe que se deixasse dito e ela provavelmente deve ter percebido que nada daquilo era a minha onda.
A partir daí acabou-se-me o contacto com os rituais da igreja.
Durante os dois ou três anos seguintes, se ia à missa, ia sozinha com as minhas amigas, já não à capela da infância mas à igreja perto de casa -- a igreja onde velámos, na capela mortuária, os meus avós e tios -- e era apenas o pretexto para ter autorização para isso mesmo, para irmos até umas ruas mais abaixo. Íamos de casa à igreja e regressávamos mas a ideia de irmos sozinhas era uma feliz sensação de desenfianço, de liberdade. Ficávamos cá atrás, na conversa, na galhofa, descobrindo quem estava e quem não estava.
Quando nasceu a minha prima mais nova, eu tinha treze anos e disse que gostava de ser madrinha dela. Deixaram. Da minha parte, não teve nada de instinto religioso nem os meus tios também eram disso. Mas senti-me crescida, eu madrinha de uma bebé, a ocupar o lugar de uma pessoa crescida. E, com esso acto simbólico, desliguei-me de vez dos cerimoniais da igreja.
E, no entanto, há em mim um forte sentido de religiosidade e agradecimento: venero a natureza, a bondade humana, a inocência dos animais, a liberdade, a beleza em estado puro, a magia dos momentos efémeros e perfeitos, a sabedoria dos acasos.
Sem comentários:
Enviar um comentário