Se calhar, aos poucos, começo a dar mostras de querer reentrar naquilo a que quem goste de aspas poderá chamar, com dedinhos circunflexos ao lado, o velho normal.
No sábado, reincidi: haveria de voltar tentar o melhor gelado de Lisboa. E à tardinha lá fomos: duas big balls, uma de chocolate e laranja e outra de arroz doce. Ao compor o exagero, a menina perguntou: 'Canela?' e eu, sem pensar, 'sim, pode ser'. Se me tivesse perguntado se queria nozes, pinhões, passas, rum, lascas de banana, pedaços de abacate caramelizado, whatever... a tudo teria dito que sim. Tudo de que estive privada nos últimos tempos. Consolei-me. Coisa mais boa.
Hoje tinha um sms a anunciar uma promoção da Fnac. Durante o novo normal (e toca a coçar os dedinhos no ar para fazer as aspinhas) bem poderiam chover promoções de tudo e mais alguma coisa: a nada prestava atenção, tinha a alma fechada ao consumo. Hoje não: hoje fui espreitar e sabia que ia predisposta ao vício. Encomendei cinco livros e, para rematar, ainda aceitei o gift por 1€. Escolhi um sabonete literário. Não o usarei para lavagens mas, se cheirar bem, para pôr algures no quarto. Um quarto com cheirinho a sabonete parece-me o suprassumo da leveza lavadinha.
Mas o pior da minha recaída nem foi isso: no outro dia fui trabalhar presencialmente. Cheguei a casa mais cedo do que antes chegava. Presencialmente não trabalho tanto. As pessoas vêm conversar, querem saber coisas, dar opiniões, falam, falam. Mostro-me disponível mas, por dentro, contabilizo a improdutividade. Em casa, é trabalho de seguidinha. Vim, portanto, mais cedo. Pensei: vou para casa, pôr o trabalho em dia. Mas, a caminho, ao passar pelo supermercado, deu-me vontade de ir olhar para as prateleiras, com tempo, sem ninguém a puxar por mim. Então, trouxe três vasinhos com suculentas e, não contente com isso, vi uma blusinha na promoção do dia que me pareceu um graça: algodão alinhado em verde azeitona. 7,99€. Tentei repescar o raciocínio do último ano e picos: 'Preciso?'. No 'novo normal' dir-me-ia 'Claro que não'. Mas agora a resposta foi: 'Que se lixe'. E trouxe a blusinha. E, no parapeito do escritório, tenho os vasinhos. O meu marido, quando chegou, ficou passado. Flores no parapeito..., coisa mais insólita.
A semana, uma vez mais, está sobrecarregada. Só que desta vez, aos trabalhos do costume, juntei outros que agora não vêm ao caso.
Há bocado, ao sentar-me aqui, adormeci. Tiro e queda. Isto resulta de ter acordado com um telefonema que me obrigou a puxar pelo raciocínio quando os neurónios ainda estavam em posição fetal, sonhando com coisas boas. Todo o santo dia o sono me agarrou pelas pálpebras, puxando-me para o descanso, para a horizontalidade.
Por isso, agora estou aqui que não posso. Há os que não me compreendem e, quando lêem isto, saltam para o meio da rua, mão na anca, para me gritar: mas, ó mulher!, então porque é que escreve? E eu dou a resposta de sempre: porque sim, porque gosto, porque me descansa a cabeça, porque os dedos gostam de dançar sobre o teclado mesmo quando os olhos já dormem.
Queria escrever uma coisa toda pipi, toda misógina, mas o tema puxava para o meu lado may west e isso não é compaginável com a pancada de sono com que estou. Mas me aguardem que guardado está o bocado para quem o há-de comer.
Ao fim do dia, enquanto andava a telefonar à minha filha e à minha mãe, tirei fotografias em especial aos brincos de princesa que adejavam ao sabor do vento.
Andam todos poéticos por aí e eu estava também a pensar que haveria de homenageá-los, em especial por um dos mais belos textos que ultimamente tenho lido. Cécias, o vento. Uma maravilha, uma maravilha. Já para não falar de quem, homenageando a repórter da natureza, teceu mais uma das suas múltiplas belas peças em que se adivinha o rasto da sua perdida penélope. E fotografei umas flores lindas que apareceram do dia para a noite para oferecer a quem ousa despedir-se da sua darling, deixando um rasto de decepção, um caminho que parece manchado de sangue.
Mas hoje não é o dia para nada disso. Ainda por cima, recebi há pouco um mail que me deixou verde. Verde no mau sentido, claro. Tive vontade de soltar os cachorros, de partir a louça, de bater com a porta. E só pensei: misógina o escambau, deveria era arranjar uma mulher para o lugar dele. Uma mulher pode ser pérfida ou burra mas tem sempre os pés na terra e mãos para amassar a massa. Quando um homem é burro é mil vezes pior, é um atraso de vida. Mil vezes o tenho dito: se mais mulheres houvesse em lugares de poder, o mundo seria outro, muito melhor. Os homens, se são poucachinhos, não atam nem desatam, mastigam mas não engolem, não dançam nem saem na pista, não procriam nem saem de cima. Um castigo. Este que me enviou o mail que me tirou do sério é daqueles que mesmo que se fossem dez iguais a ele fariam dez vezes menos do que uma só mulher, fosse ela como fosse.
Portanto, apesar das minhas boas intenções, deixo as boas ideias para um dia em que consigam espraiar-se à vontade e à vontadinha. Hoje, agora, vou mas é pregar para outra freguesia.
Ilustrações de CarrieAnn Truitt na companhia de Stacey Kent com How insensitive
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Um dia bom
3 comentários:
Talvez por estar a reler Os Maias, ou talvez por ouvir repetidamente Sokolov, ou talvez pelo som da água ao fim da tarde, ou pelo que as estrelas entre os pensamentos nos vão ensinando, a verdade é que com o tempo vamos perdendo, entre outras coisas, alguns dos inúteis espinhos. E assim, despidos, somos verdadeiramente guerreiros: ouriços nus a enfrentarem raposas cheias de calor.
Obrigada, UJM.
Não sei, Teresa, se é a matura idade ou se é a chegada à idade da inocência.
O que sei, ao lê-la, é que a vejo a caminhar num caminho cada vez mais fantástico, e a vejo mais destemida, mais livre, mais capaz de se entregar a todas as descobertas.
Desejo que o prazer que sinto ao ler as suas palavras ou a ver as suas escolhas (imagens, músicas) seja uma ínfima parte do prazer com que compõe aqueles seus belos apontamentos.
Obrigada.
Dias felizes.
Dias felizes, também para si. Faltava isto.
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