Tenho para mim que quando uma fera se atira à jugular da vítima não deve uma única vulnerabilidade, nem calos nas patas nem uma unha encravada ou um grão de areia a incomodar o olho. Quando se atira a doer é para acertar. Não pode haver o risco de, na hora, haver algo que possa fazer vacilar.
Tem razão José Sócrates em saltar para a arena para sacudir de cima de si a larga maioria dos crimes com que o Ministério Público, ao longo de sete anos, infamemente tentou sujá-lo. Tem razão em revoltar-se contra a ignomínia de que foi vítima. Se fosse comigo, tudo faria para cair em cima dos infames. Nem que tivesse que lutar até ao limite das minhas forças e até ao fim dos meus dias para que fossem condenados, fá-lo-ia.
Mas fá-lo-ia se não tivesse manchas na consciência, se não tivesse nada a esconder. Nessas circunstâncias, sem quaisquer hesitações, daria o peito às balas e denunciaria -- em todos os tribunais do mundo, se necessário fosse -- aqueles que tivessem tentado destruir a minha honra.
Desde o início que acho que toda a fantochada em volta de Sócrates era uma pouca vergonha. As coisas quando são a sério não têm carnaval à volta. Se havia suspeita séria contra ele, agia-se dentro da lei, da ordem e da decência. Não era nos Sábados e Correios da Manhã desta vida, não era com as câmaras em directo, não era com fugas de informação, não era com nacos avulsos que provocam discursos inflamados como os que acabei de ouvir na TVI a uma histérica Joana Amaral Dias ou a outras criaturas que, nada conhecendo de leis e pretendendo o auto protagonismo, insufladas de demagogia e populismo, pretendem que se julgue sem provas, na rua.
A minha matriz formativa é a da matemática e, na matemática, entre outras vertentes, prezo a lógica. Mesmo perante o apelo das aparências, não me afasto do que me parece ser o rigor. Pode a intuição pretender condimentar a análise mas, quando é para me pronunciar a sério, não me desvio um milímetro nem dos factos devidamente provados nem da lisura dos raciocínios.
E, tal como na matemática há os axiomas que não carecem de demonstração, também aqui há o que assimilei como incontornável: toda a gente é inocente até prova em contrário.
Pode a Joana Amaral Dias, a Felícia Cabrita, cinquenta bloggers, uma mão cheia de jornalistas, vinte peixeiras, quarenta justiceiros, cinquenta freiras, sessenta cabeças rapadas, cem galinhas cacarejantes decretarem penas e ditar sentenças que eu não me movo um milímetro: toda a gente é inocente até prova em contrário.
Para sair daqui, têm os tribunais que dar como provados os factos que o contradigam.
Portanto, de tudo -- tudo -- o que ouvi e li do Caso Marquês, de todas as suposições que me pareceram delirantes, de todas as fantasias que me pareceram lunáticas, de todos os enredos que me pareceram ilógicos, apenas um facto me pareceu, desde o início, estranho e a carecer de explicação.
Desde o início o disse -- e aqui o disse --: se nada fez de ilícito, Sócrates deveria ter eliminado a suspeição que, junto da opinião pública, se instalou e explicado a que bizarro fenómeno se deveu aquele imoderado uso de empréstimos por parte do amigo.
O fazer agrados a amigos por parte de gente rica não é inédito nem é, por si só, crime.
Conheço um homem muito rico, muito mesmo, que tem proporcionado toda a espécie de mordomias a um amigo. Porque o faz? Faz porque pode. Faz porque aprecia a companhia do amigo e porque sabe que a única maneira de usufruir da companhia dele é pagando-lhe as viagens e as estadias. Tornou-se sócio do amigo numa empresa porque a empresa estava em dificuldades e porque quis ajudar o amigo -- e porque o dinheiro que lá pôs (uma e outra e outra vez) a ele não fazia diferença e para o amigo era determinante. Conheço ambos. Como é que o amigo aceita tantas mordomias e tantas ajudas? Não sei. São amigos. As mulheres são amigas, os filhos são amigos. O que recebe as prendas e prebendas sabe como o homem rico genuinamente aprecia a sua amizade e companhia. Alguma corrupção nisto, alguma coisa de ilícito? Não. Conheço ambos. Nada de mal. O menos endinheirado é um homem culto, letrado. O muito rico aprecia ouvir o menos rico, aprecia a convivência com alguém que tem milhares de livros, que sabe falar de história, de filosofia, de física, de gestão. Quem os conhece bem diz: é como se fosse uma relação de irmãos. Já não se questiona: é assim e é lá com eles. Se me perguntarem se eu alguma vez seria capaz de viver em grande parte às custas de um amigo a resposta é não. E, no entanto, conhecendo a amizade e a dinâmica da convivência entre aqueles dois, já me habituei a aceitar isso como 'natural'. Há nisto qualquer coisa como havia com os homens ricos de antanho que patrocinavam artistas, músicos, escritores.
Terá sido isso que se passou com Carlos Santos Silva e Sócrates? Pode ser que sim. Mas, se foi, tal deveria ser assumido, explicado sem peias. É um assunto pessoal e ninguém tem nada a ver com isso? Pois. É verdade. E prezo muito a privacidade e a liberdade individual de cada um. Entre pessoas sem vida pública em funções de responsabilidade política, sem dúvida. Se a minha mãe me der dinheiro ou se o meu conhecido muito rico financiar uma vida abastada ao amigo ninguém tem nada a ver com isso. Mas se algo de intrigante a esse nível se passa com um ex-primeiro-ministro, então ou há uma explicação inequívoca ou é correcto que se julgue sobre a transparência e licitude dos factos.
Ou, não foi bem isso e, dos tempos do início da carreira, dos tempos de fura-vidas, dos projectos de vivendas e coisas assim, subsistiram dívidas de gratidão de Carlos Santos Silva para com Sócrates que se traduziram nestas liberalidades? Estamos a falar de proventos que, tendo sido recebidos em espécie, não foram declarados como rendimento? Bem... se é isso, não estaremos perante um caso de fuga ao fisco? Dúvida legítima.
Nada tendo Sócrates explicado, é normal que advenham dúvidas e, havendo-as, é normal e saudável que sejam explicadas.
Sobre todas as outras ficções, Ivo Rosa mandou o Ministério Público ter juízo. Ou melhor: mandou que tivessem vergonha na cara. Rosário Teixeira, Carlos Alexandre e sobretudo a Santa Mana aka Joana Marques Vidal, a mais incompetente de todas as incompetentes que a Justiça pariu, foram mandados para o estrado, com orelhas de burro. Expostos ao público por toda a sua ineficiência, falta de inteligência, incompetência. Sem meias palavras.
Mas, sobre o mistério dos empréstimos, Ivo Rosa mandou que seguisse a procissão para que se apurem e julguem os factos. Fez bem. Se Sócrates está inocente, a inocência há-de ser provada. Se não está, deve ser condenado.
E não falo de julgamentos políticos ou morais -- esses não são do domínio da Justiça. Falo de crimes enquadráveis pelas molduras penais devidamente instituídas. À Justiça o que é da Justiça.
Tirando isso, nada a não ser que desejo veementemente que a sociedade se mobilize para erradicar a prutefacção que grassa na Justiça portuguesa. E, já agora, que se afiram as capacidades intelectuais e emocionais, a estabilidade psicológica e a sanidade mental dos magistrados em geral e dos juízes em particular.
8 comentários:
A inveja é tão má conselheira que leva a fazer borradas monumentais como esta, o problema é que se conseguiu durante 7 anos alimentar um folhetim em que se transformou uma pessoa no Mestre do Mal.
Ivo Rosa deu uma lição de 4 horas de Justiça que tive oportunidade de ver na íntegra.
De que peça a UJM falou, a Joana Amaral Dias, que se intitula Psicóloga sem ser membro de qualquer natureza da Ordem dos Psicólogos. Estamos conversados quanto a ética e legalidade.
Uma rica 6f.
Ora nem mais. Mas estou pessimista sobre o saneamento que é necessário fazer na Justiça. Aliás, tenho a acrescentar que ver tantos "impolutos" ontem nas televisões a salivar ódio contra Sócrates e contra Ivo Rosa foi, mais uma vez, muito esclarecedor.
Antigamente no primeiro ano de Direito aprendia-se a distinguir entre direito, moral e justiça, sendo que a justiça e o direito são irmãos gémeos, separados à nascença, que quando se encontram não se reconhecem.
Julgar é fácil, todos nós fazemos julgamentos diariamente, mas julgar segundo as regras do processo penal ou civil é mais difícil, e daí que nem todos podem ou devem ser juízes.
Só quem anda pelos tribunais sabe avaliar a importância do que se passou ontem, em que um juiz limpou as cavalariças de Augias de um processo que começou mal, cresceu como um cancro e começa agora a ser reduzido à sua justa dimensão.
Independentemente do que venha ainda a passar-se, aquela decisão, apesar dos vinte e dois volumes, merece ser estudada futuramente pelas novas gerações de juristas.
JMM
Já há uns dias o fiz e volto a cumprimentá-la pela sua frontalidade sobre o caso de Sócrates numa altura em que poucos têm coragem de o fazer, porque o julgamento na praça pública foi o recurso dos que afinal tinham pouca substância na acusação.
Põe o dedo na ferida: e se fosse connosco?
Essas feras que refere chamam-se Bestas, com propriedade e sem desprimor, mas as quais muito pouco partilham com esses outros seres, ainda animais, ditos dotados de Razão.
A justiça não se aplica ao mundo selvagem, o leão não merece castigo por abocanhar a presa nem o gato deve cumprir pena por deliciar-se com a agonia do rato. Por isso, minha cara Senhora, essa sua sede de vingança em sede partidária não colhe. Se tão imparcial fosse, como grita ser, não estaria tão assanhadamente feliz com o não-desfecho do caso Sócrates. Estaria sim, como presumo estarão todos os seres racionais, muito baralhada e apreensiva, a pedir aos santinhos que a não lancem jamais nas malhas da dita Justiça, portuguesa ou outra.
Mas não, a iva rosa dos blogues, absolve sem julgamento e decide em causa própria.
Kina
Sabe ler? Quer fazer um esforço e tentar ler e compreender o que escrevi...?
É que acho que comentou outra coisa qualquer que não a que escrevi e insultou outra pessoa que não eu.
Ou não é falta de saber ler mas sim falta de óculos? Algum problema deve ter.
Seja como for, desejo-lhe um bom sábado.
Por falar em óculos, bendito senhor doutor que, não sendo juiz, me segue há anos na especialidade Glaucoma, e assim me diz: não lhe posso dizer que tem a doença mas também não posso dizer-lhe que a não tem. Uma dúvida razoável ao contrário, dir-se-ia, mantém-me em julgamento, com consultas e exames periódicos. Pior seria mandar-me à minha rica vida, na avaliação primeira e instrutória, por não ter provas da doença.
Seja como for, está explicada a minha falta de visão.
Esta decisão é provisória, já que o MP irá recorrer dela. Vejamos o que o Tribunal da Relação irá dizer, uma vez receba a contestação do MP. Se irá acolher algumas acusações do MP, que o Juiz de instrução preparatória, Ivo Rosa, refutou, ou não. E até, se concordará com as acusações que Ivo Rosa apontou a José Sócrates. O processo ainda vai no adro, por estranho que possa parecer. Ficou-me a impressão de que o MP não fez um bom trabalho e que uma boa parte da substância do conjunto das suas acusações não tinha a sustentação e solidez legal que se impunha. Desde nulidades processuais, a prescrições, etc. Mas, lá está, pode ser uma questão de interpretação jurídica, que, agora, competirá ao Tribunal da Relação (de Lisboa) dirimir e pronunciar-se. Aguardo, com curiosidade, essa decisão, embora tenha de esperar muito provavelmente um bom par de anos, o mais certo. São milhares de páginas, convenhamos!
Sobre este assunto, talvez não fosse despiciendo ler o que o Bastonário da Ordem dos Advogados disse e foi referido, hoje, no Expresso On-Line.
Seja como for, mesmo aquilo de que José Sócrates foi pronunciado por Ivo Rosa não abona muito a favor do ex-PM.
Mas, como digo, haverá que aguardar pela decisão do Tribunal de instância superior – a Relação.
Há todavia uma coisa que julgo que ninguém discordará: é que este processo foi mediatizado por razões de ordem política. Veja-se o que, por exemplo, escrevem algumas luminárias, como esse bandalho do Observador, Alberto Gonçalves, sobre isto. Se fosse Cavaco Silva a ser objecto de um processo judicial deste tipo, lá viriam uns tantos cabotinos a escrever em sua defesa.
Dito isto, deixo claro que não tenho qualquer simpatia, quer política, quer pessoal, por José Sócrates. Apenas me interessa a questão jurídica e judicial que o envolve. Nada mais. Conviria porém que o MP fosse, no futuro, sobretudo com casos deste tipo e desta grandeza (de volume de páginas e com o impacto político que tem) fosse não só mais célere (até para evitar as tais prescrições eventuais, por exemplo), mas mais eficiente (com vista a evitar nulidades e falta de sustentação probatória – segundo o que Ivo Rosa mencionou e se sustentou para desconstruir uma larga parte do argumentário da acusação.
A Justiça debate-se, hoje em dia, com “alguma” falta de meios. Basta ouvir o que quer a PJ, MP e Juízes, Tribunais, se queixam. Compete aos Governos (este ou outro, antes ou depois) resolver esta situação e colmatar essa situação, que é verdade.
Em resumo, aguarde-se o que o Tribunal da Relação irá dizer.
PS: ao que li, já há uma Petição a pedir a destituição de Ivo Rosa da carreira da magistratura. Cheira-me a manobras de simpatizantes de André Ventura e daqueles católicos tipo Opus Dei, que têm memória selectiva e se esqueceram do Gang que governou Portugal ao tempo do safado do Cavaco Silva, onde como se sabe alguns dos seus ministros viveram e vivem a contas com a Justiça e muita porcaria praticaram (alguma dela que nós contribuintes tivemos de acudir).
P. Rufino
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