Parte da família veio na véspera e jantámos juntos, nós numa mesa, eles numa outra. Bacalhau com todos, claro, e porque os meninos não apreciam bacalhau, fiz um empadão com carnes diversas que cozinhei na hora e um puré feito com batata normal, batata doce e cenoura. Estava dourado com gema de ovo por cima e todos gostaram muito. Não fiz sobremesa, claro. Mas veio uma tarte de pera deliciosa e rabanadas e eu tinha um bolo de massapão e bombons. Estão sempre bem dispostos e são carinhosos e sinto-me muito feliz. A lareira acesa, as janelas abertas. A casa iluminada, acolhedora. Um dos meninos, o que é mais zen (o mais zen às vezes mas, também, o mais aguerrido noutras) gosta muito das minhas massagens e, portanto, pediu uma. Sugeri que se sentasse num puff junto à lareira e eu num puff atrás dele, ambos de máscara. Hoje recebi uma fotografia do momento. Durante uma meia hora ele nem se mexeu, o corpo tranquilo, a mente tranquila. Enfio as mãos sob a camisola e massajo-lhe as costas, o pescoço, os ombros. Depois massajo-lhe o couro cabeludo. Fica em transe, em silêncio. O calor da lareira é um bons calorzinhos desta vida, tão acolhedor. E fomos conversando até serem horas de se abrirem os presentes. E foi uma alegria. Receberam presentes que desejavam muito, ficaram felizes. E foi tão bom estarmos assim, em família, luzinhas a piscar, madeira a crepitar.
De véspera a minha mãe tinha recebido a visita do meu tio e da minha prima. Perguntei logo: e estavam de máscara? Que sim e que ela também foi logo pôr. Menos mal. Tinha-lhe andado a pedir encarecidamente que não visitasse amigas nem recebesse visitas. Nunca sei bem se vai nas minhas conversas pois, volta e meia, a posteriori, relata-me situações que nem aprofundo para não me preocupar desnecessariamente.
O meu tio ofereceu à minha mãe um quadro que pintou para lhe oferecer.
A casa, com a maltinha toda, entra logo num outro registo. Os meninos, quando estão juntos, ficam numa alegria que é digna de ser observada. Adoram-se. Houve nova troca de presentes, a sala pejada de sacos, embrulhos, uma animação.
Entretanto, estive toda a manhã a preparar as iguarias. Contudo, tive a vida bem facilitada pois não apenas veio comida já feita como encaminhada. Brunch. Duas quiches, uma de espinafres e cogumelos e outra de frango e alho francês, piano no forno, salmão frio, batatas no forno, umas com bacon e ovos, outras com alheira e ovos. Raviolis e tortelinis recheados uns com salmão, outros com ricota e espinafres, tiropitas de ricota, maçã e salmão. Salada de tomate cereja com mozarela. Tábua de queijos, prato de carnes frias. Paté de frango. Batatas fritas. O resto do empadão.
De sobremesa, nada feito por mim, salame de avelã, folar de maçã, bolo de agrião, bolo de laranja coberto de chocolate, arroz doce, coscorões e sonhos. E bombons que também não fiz mas que, pelo menos, escolhi.
A minha mãe ficou à cabeceira da mesa grande e eu e o meu marido na outra ponta da mesa, a minha filha e família numa mesa a meio caminho e o meu filho e família na mesa mais ao fundo. Lareira acesa, janelas abertas. E esta parte, confesso, foi a mais estranha de tudo. Natal é estarmos perto uns dos outros, conversarmos ao lado ou de frente, não a metros de distância uns dos outros. Não dá jeito. E fizemos assim: em cada mesa havia talheres de servir e levavam-nos para não haver muita gente a mexer nos mesmos talheres. A comida estava nas bancadas da cozinha mas íamos à vez. Por isso também houve algum desfasamento na hora de início e de fim. Espero que para o próximo Natal eu já possa ter as mesas ao pé umas das outras, todos perto uns dos outros. Nos outros anos até tínhamos que nos apertar tentando caber o mais possível à volta da mesma mesa. Era uma barafunda de conversas cruzadas e animação. Agora também foi mas o facto das mesas estarem afastadas umas das outras esbateu um bocado aquela sensação de proximidade que é uma das coisas boas que o Natal tem.
Depois fez-se frio e voltámos para dentro. Lareira acesa, janelas abertas, sempre de máscara excepto quando se comeu e, nessa altura, longe uns dos outros. Lanchou-se. Brincaram, conversámos.
E. quando a noite caiu, houve preparação de marmitas e cada um foi à sua.
Fomos levar a minha mãe a casa. Vi o quadro que o meu tio lhe ofereceu e fiquei surpreendida. Muito bonito. Tem a idade da minha mãe. É o irmão mais novo do meu pai. É uma pessoa boa a quem nunca vi outra coisa que não um sorriso, mesmo quando é um sorriso triste. Estivemos a ver onde é que o quadro deveria ficar. Ficará valorizado com uma bonita moldura. Vim admirada e até comovida com o belo quadro que ali está.
Também recebi presentes de que gostei muito e, sobretudo, vivi o Natal em família, no aconchego da casa, rodeada pelas pessoas que trago sempre no meu coração e de que gosto -- e preciso -- de me sentir próxima.
Claro que nestes momentos, apesar da animação, de vez em quando bate, por dentro, às escondidas, uma ponta de nostalgia. Este ano tem sido dureza. E um ano de perdas. Mas logo respiro fundo e deixo para lá. Não adianta. Portanto, agarro-me à alegria de estar perto daqueles que amo e que sinto que também me querem bem. Nada é tão bom como isso.
Caminhamos para o fim deste ano. Lembro-me da esperança que senti ao entrar em 2020. Parecia-me um ano tão promissor. Vinte vinte. Pensava que um ano com um nome tão promissor, vinte vinte, tinha que ser um bom ano. Afinal, veja-se. Ano mais triste não deve ter havido muitos. E sei que, quem saiba de história, pensará que, sim, claro que houve muitos mais: tremores de terra que destruíram cidades, guerras, mortandades, devastações, pragas e pestes. Bem sei. Mas reporto-me aos tempos presentes, o mundo inteiro, um mundo em grande parte desenvolvido e rico, a sofrer o mesmo mal: uma ceifa geral, uma súbita mudança de hábitos, o medo do invisível. Neste preciso momento, em menos de um ano, identificado como óbito por covid, a estatística já vai em 1 736 752. Uma coisa impensável. Uma doença surgida do nada. Não fui, pois, a única pessoa a sofrer a perda de um familiar pelo que também acho que não devo falar nisso. No outro dia, um conhecido perdeu a mãe depois de dois meses antes ter perdido o pai. Há sempre quem esteja pior que nós, quem esteja verdadeiramente mal, amputado de familiares ou entes queridos cuja perda era imprevisível e se tornou insuportavelmente dolorosa, quem deva ser respeitado pela indescritível dimensão da sua dor.
Mas não são essas as únicas perdas. E os que sofrem maus tratos ou desrespeitos, tanto mais dolorosos se forem às mãos daqueles que se julgava serem pessoas de bem? Que tristeza se deve sentir. E as saudades e o desânimo? Quantas saudades se deve sentir quando se perde a esperança em dias melhores?
Penso nos que sofrem. Escrevo a pensar nas pessoas que não sentem vontade de festejar, que tiveram perdas irreparáveis, que não têm a que se agarrar para poderem atenuar a tristeza que sentem. E é para essas pessoas que vai, de novo, o meu abraço.
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