A gatinha anda por aí. Branquinha e cor de mel. Silenciosa. Apanha sol, desliza por entre as flores, disfarça-se por entre as sombras, oculta-se em plena luz. Existe e isso chega-lhe. Quando se espreguiça sabe que é feliz e essa é a felicidade maior, a que não precisa de ser procurada. Por vezes brinca. Brinca às escondidas, a gatinha. Foge, espreita, vigia, tem vontade de se aproximar mas também tem vontade de fugir, e hesita. Hesita, hesita. Esconde-se. Brinca. Não diz nada. À gatinha nunca ninguém ouve uma queixa, não é disso. É mais de virar as costas e dar um bye. Mas fica de longe, a espreitar. A esperar. A querer aproximar-se.
Escuta, confunde-se com o silêncio. E espreita. Observa. Talvez pense. Ou talvez não. Não é de pensar, é mais de sentir.
Mas, na sua inocência de gatinha feliz, ela sabe que o mundo não é bem assim, não é só o muro em que se deita ao sol, os carreiros por onde se esgueira entre as árvores, os pássaros que por ali andam. Não, não. Ela sabe que há perigos.
E o lobo? O que faria o lobo? Assustar-se-ia com a doçura da gatinha? Teria coragem de atacar quem parece nada temer?
Talvez o lobo tivesse vontade de chamar a gatinha. Mas não sabe o seu nome. Se quiser chamá-la, talvez se limite a fazer bschhh, bschhhh, bschhh. De que outra forme a chamaria? Apenas com o bater do seu coração? Talvez o lobo pense que, se tivesse dois corações, assim a gatinha o ouvisse. Assim, não ouve. Então, entre respirações, talvez ensaie o tal chamamento: bschhhh, bschhh.
A gatinha fará de conta que não ouve. Gosta de fazer que não percebe, gosta de se fingir desinteressada.
Talvez o lobo se deite, silencioso, disfarçando o tremor que lhe nasce da ansiedade, talvez em surdina balbucie bchhh, bschhh, bschhh. Os olhos luzindo na noite, a respiração ofegante, o lobo quer mas não quer, quer mas não quer.
Que faria ele se estivesse perto da gatinha? Não sabe. Não sabe lidar com gatinhas despreocupadas, felizes. Receia que a gatinha quebre o seu coração em dois. Ficaria, então, com dois corações mas incompletos, despedaçados.
Recuará, certamente, o lobo. Hesitará. Os lobos são seres literários, uivam em silêncio na calada da noite, são seres solitários, preferem viver nos sonhos, nas páginas dos livros, preferem a companhia das palavras. São seres dúplices. Atravessam os caminhos frios e sombrios em que não há vivalma, escondem-se onde ninguém os pode ver, vivem em grutas, são vultos, confundem-se com vultos, desdobram-se em vultos. São obscuras emanações da noite. Desconhecem a voluptuosidade do sol sobre a pele, desconhecem a alegria de pouco mais saber do que viver sem pensar.
Mas o lobo é também um ser atento e cultivado, sabe que é natal. E, então, armado em bonzinho, anda um pouco mais, rasteja por entre as ervas húmidas da noite, o bafo morno transformado em fumo, quase deslizando por entre as silenciosas sombras da madrugada, põe o peito a descoberto para que melhor ela lhe arranque o coração, mostra as patas cheias de cicatrizes, quer que a gatinha saiba que já foi ao fim da noite. Depois aproxima-se ainda mais e sussurra: rom-rom... rom-rom... rom-rom...
Quanto à gatinha não vou nem dizer qual a reacção. O conto é de natal mas convém que tenha algum suspense, pelo menos para poder ter continuação.
2 comentários:
Tempos modernos: no fim, o lobo come a menina e a avó da menina. Ela com 20, a avós com 58. Escapa a mãe por não constar da história.
Olá Anónimo,
Quanta ingenuidade... Acha mesmo isso... Ná... Sabe o que a gatinha, a menina, a avozinha e até a mãe da menina, que não faz parte da história, fizeram...?
Quer que lhe conte?
Ok, eu conto.
Domesticaram o lobo. Óbvio. Agora o lobão, feroz, vozeirão, quando vê a gatinha abana o rabo, levanta a patinha e diz béu-béu. Um fofo.
😜
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