domingo, dezembro 06, 2020

A gorda do call center também vai receber um presente pelo Natal

 

De cada vez que se vê ao espelho descobre que está mais gorda, mais velha, mais feia. Acorda cedo demais. Tenta voltar a adormecer mas não consegue. Levanta-se, veste um roupão que já lhe fica justo, enfia uns chinelos que já estão gastos. Na cozinha prepara torradas e café com leite. A seguir liga a televisão. Pensa: só porcaria. Acaba onde sempre acaba, no correio da manhã tv. Percebe que gosta de ver desgraças para sentir que há quem esteja pior que ela. E sente-se patética por isso.

Liga o computador, começa a atender chamadas. Está em teletrabalho. A meio da manhã abre um pacote de bolachas. Leva-as para o pé do computador. Atende as chamadas da mesma maneira, dezenas de vezes por dia. Chega a um ponto em que já nem sabe o que diz.

Vai à casa de banho. Pensa que deveria pintar o cabelo mas falta-lhe a vontade. Pintar o cabelo para quê? Se nem banho lhe apetece tomar.

De passagem pela cozinha, espreita o frigorífico. Tira uma piza congelada. Dá para o almoço e para o jantar. Volta a atender chamadas. Pensa muitas vezes que há pessoas muito estúpidas. Ameaçam-na ou insultam-na como se ela fosse a responsável pela política comercial da empresa. Tem que ter uma paciência... Muitas vezes exigem que passe ao supervisor. Claro que não passa. É avaliada em função do número de chamadas e descontam as vezes em que não consegue resolver e passa a chamada ao chefe. Portanto, atura até mais não poder. Quantas vezes, quando acaba o dia, não se senta a chorar? Quando não chora, está como que anestesiada. Diz o seu nome incontáveis vezes por dia. Nunca gostou do nome e agora ainda menos gosta. 

Sujeita-se. Precisa do que ganha. Ficou desempregada, esteve no desemprego, não arranjou nada. Até que apareceu isto. Tanto se lhe dá. 

Vive sozinha. A mãe diz que podiam viver juntas, que poupava a renda, que faziam companhia uma à outra. Não quer, sente que perderia a única coisa que tem, liberdade. A mãe no outro dia perguntou-lhe com desprezo na voz: liberdade para quê? Para ficares fechada em casa, cada vez mais gorda, cada vez mais desleixada? Nessa noite não conseguiu dormir. 

Esta noite está aborrecida, mais do que é costume. Continua de pijama, de robe, mal penteada. Na televisão falam de natal. Não quer ouvir. É um dia triste, o de natal, sempre o foi. A solidão muito palpável, ela e a mãe, as duas à mesa a verem televisão. Costuma dar à mãe uma camisola ou, então, collants de malha e uma embalagem de broas, a mãe gosta de broas, e a mãe costuma dar-lhe pijamas ou toalhas para a casa de banho ou panos de cozinha, coisas que já não sabe onde guardar. Depois de almoço e de lavarem a louça, vão para o sofá, a televisão da sala ligada, a mãe a fazer pegas de cozinha, a falar-lhe das vizinhas ou a contar histórias antigas, e ela sem nada que dizer. Nem as vizinhas da mãe lhe interessam nem tem paciência para histórias que conhece de cor e salteado. Nesses dias só deseja que seja hora de ir para casa. Agora, com isto da pandemia, só pede a deus que seja proibido festejar o natal. 

Senta-se na cama e pensa naquela voz que, ao fim da tarde, lhe pareceu tão simpática. Tem a impressão que na véspera aquela voz já lhe tinha aparecido. Ela disse o nome e perguntou o que sempre pergunta, em que poderia ser útil. A voz disse o seu nome, coisa rara, nunca ninguém fixa o seu nome. No fim, voltou a dizer o seu nome a desejou-lhe um bom resto de dia. Foi ao espelho ver-se. Está mais acabada do que a mãe. Flácida, descorada, cabelo comprido demais, já sem jeito, as raízes já meio brancas, mal arranjada. A mãe tem razão, tem um ar cada vez mais desleixado.

Deitou-se tarde. Pôs-se a ver telenovelas, big brother, porcarias. De vez em quando muda de canal e é isso que diz a toda a hora: porcarias. Tomou um comprimido para dormir. Dormiu mal.

No dia seguinte, acordou a sentir-se infeliz. Acorda muitas vezes assim. Olhou-se ao espelho e teve pena do que viu. 

Foi ao roupeiro buscar umas calças mas não lhe serviram. Tentou outras e também não serviram. Foi à procura do fato de treino. Cheirava a roupa guardada há muito tempo. Coube mas ficou justo, ridículo. Vestiu uma parka para disfarçar. Foi ao supermercado logo à abertura, fez as compras do costume e, quando estava a ir para a caixa, voltou atrás. Tinta para o cabelo. Em vez da cor do costume resolveu trazer louro. Quando estava na caixa, hesitou: louro? Voltou à prateleira, trocou pela cor do costume. Quando ia a chegar à caixa, num repente voltou atrás e resolveu trazer mesmo o louro. Pensou que, fechada em casa sem ninguém a ver, mesmo que ridícula, o mais que poderia acontecer seria passadas duas ou três semanas voltar ao supermercado e trazer a cor habitual.

Quando chegou a casa, pegou numa tesoura e cortou o cabelo. Não cortou muito, só as pontas, só para ficar com algum jeito. Depois aplicou a tinta. Quando estava na hora, meteu-se na banheira e tirou a tinta, lavou-se.

Até estava com medo de se ver ao espelho. Olhou a medo à medida que retirava a toalha. Espantou-se. 

Pensou que tinha que comprar roupa que lhe servisse. Depois pensou que devia era fazer dieta. Descobriu uma camisola que lhe cabia embora justa demais e, por cima, vestiu uma túnica larga de verão, sempre disfarçava.

Quando ligou o computador e começou a atender chamadas sentiu-se mais animada. Quando à tarde, de novo, lhe apareceu aquela voz, sorriu. Quando perguntou em que podia ser útil, ele disse: liguei apenas para lhe dizer que gostava de lhe oferecer um presente de natal. Com o coração em sobressalto, ela respondeu: peço desculpa mas este número não deve ser usado para brincadeiras. E ele: não é brincadeira, gostava de retribuir a sua simpatia. Ela sentiu-se a tremer. Não foi capaz de dizer nada. Ele continuou: se quiser dizer-me para onde posso enviar, agradecia. Desconhecendo-se, sem pensar no que estava a fazer, ela perguntou: não quer antes encontrar-se comigo? Foi a vez dele ficar em silêncio. O coração dela descompassado, já arrependida pela ousadia. Ao fim de uns instantes que lhe pareceram uma eternidade, ela ouviu-o a dizer: Sim, eu gostava, não tive coragem de lhe fazer a proposta com medo que levasse a mal. Mas sim, vou gostar de conhecer a mulher que tem uma voz tão doce. 

Ao fim do dia, vestiu uma camisa larga aos quadrados, saíu a correr, foi à primark comprar roupa, voltou ao supermercado para comprar chá para perder peso, um baton e uma sombra para os olhos. Voltou para casa a correr para ir ver na internet o que é que se oferece a um homem, para experimentar a roupa nova, para experimentar a maquilhagem. E não conseguia parar de sorrir. 

Nessa noite não viu televisão. Esqueceu-se de tomar o comprimido. E dormiu como uma santa.

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Nota: Não sei quem é a senhora da fotografia. Encontrei-a aqui e achei que poderia ser assim a minha heroína.

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Desejo-vos um belo dia de domingo

1 comentário:

Lúcio Ferro disse...

Então e depois? O que é que aconteceu depois? O gajo tinha mau hálito e era perneta? Um serial killer que encontrava as vítimas telefonando aleatoriamente para call centers, tendo uma intuição tão apurada que só pelo timbre de voz conseguia descortinar as fêmeas desesperadas? Ou um ser genuinamente bem intencionado (que por causa do covid enviuvara recentemente) e tão solitário quanto a heroína?

Boa malha, aguardo a continuação, querida UJM. :)