quarta-feira, novembro 18, 2020

Safámo-nos de boa, essa é que é essa

 


Está a fazer um ano que a coisa começou a desenhar-se. Ouvia-se e parecia coisa distante. Coisa lá deles que gramam comer bicharada comprada vivinha da silva. Nós não, a malta cá é evoluída, vegan e tal, não somos cá de comer pangolins e o escambau.

Depois começou a abeirar-se. Coisa estranha. Os italianos a cantarem à varanda, uma coisa a fazer lembrar que la vita è bella. Vocês querem lá ver...?

Depois foram os que tinham ido lá para a neve que, ao virem, espalharam por cá. Um aqui, outro ali. E a malta a fazer contas de cabeça. Mas será possível que...? Ná, a gente não saíu de cá, tá tudo bem.

Ainda me lembro da malta das minhas convivências a depreciar. Uns valentões. Que não tinham medo, que era uma gripezinha de nada. Um para mim, desafiador, marialva, sorrisinho gozão: 'Mas quê...? Tá com medo...?'. Maroto.

Em meados de Março, tudo para casa. Mas só porque sim. Exagero, diziam eles. 

Até que o Vieira Monteiro foi desta para melhor. Aí... upsss... alto lá... mas então isto também limpa malta destas...? A percepção começou a mudar lá para os meus ex-lados. 

Aqui ao lado, em Espanha, uma mortandade. Não conseguiam dar conta da fera. Assustados. E nós assustados a ver tamanha devastação. 

E uns acreditando mais, outros menos, uns fazendo isto, outros aquilo, cada um fazendo o que podia, a verdade é que se achatou a curva. 

No verão a coisa estava melhor, a malta basicamente na rua não se contagiou tanto. Só mais os velhinhos, tadinhos, fechados nos lares, a respirarem o arzinho contaminado. Primeiro a malta pensava: isto é nos lares clandestinos, coisa de pé rapado, não têm condições. Mas depois foi nos outros, nos oficiais, nos certificados. E vá de brigadas a ver o que se passa. Até o Ferro questionou. Mas, pelos vistos, continuam a não retirar conclusões.

Ainda no outro dia, um lar todo exemplar, tudo desinfectadinho, todos longe uns dos outros, a família através de acrílico, coitadinhos, para bem deles tem que ser. Todos numa sala, afastados, nada de velhinhos em círculo, ná, tudo como numa plateia. E... todos sem máscara. As janelinhas fechadas para não entrar friozinho, tadinhos, são tão friorentos, tão frágeis. Ou seja: claro que é só até o bicho lá entrar... que ficam todos. Às dezenas de cada vez. E ninguém vê o óbvio: o mal é o ar, o ar quando está contaminado. E, sem máscara, vai tudo. A comer ou a dormir tem que ser sem máscara. 
Então...? Então, como têm que estar dentro de casa e com as janelas fechadas, tem que se rever o sistema de ar condicionado. É caro? Ah, pois é. Mas então? Será preferível morrerem pessoas a este ritmo? E vão as brigadas ver se está tudo afastadinho, se as funcionárias sabem os protocolos. E está tudo bem. Só os velhinhos é que continuam a morrer à força toda. Enfim, adiante. 

Entretanto, acabou o verão, veio o tempo do indoor. E, claro, os números dispararam. 

Não é segunda vaga. Qual segunda vaga? É a mesma. Pensam o quê: que o bicho deu tréguas e agora se assanhou outra vez? Disparate. A malta é que se põe mais ou menos a jeito. 

Dir-se-ia: com tanto tempo para aprenderem, a malta já percebeu que isto é para levar a sério. Nada. No domingo, como aqui contei, vi o impensável: centenas de portugueses exemplares (certamente mais de mil), nem sei, uma concentração de gente a correr, a andar de bicicleta, tudo a ofegar à força toda, ao lado umas das outras e a cruzarem-se em permanência uns com os outros -- e a grande, grande maioria sem máscara. Nem todos ficaram infectados? Claro que não: o vírus é selectivo, escolhe bem em quem se instalar. E depois há os que estão infectados mas o vírus também é sonso, faz de conta que não está lá, finge-se de morto. Mas, com certeza, que alguns a esta hora estão a caminho de ficar doentes.

E vendo bem: com tanta malta a pôr-se a jeito, muito pachola é o corona. O pior é que, apesar disso, aqueles em quem ferra o dente e que não se aguentam à bronca são mais do que as camas (e o pessoal) disponíveis para os tratar. Pior: há muito pessoal clínico infectado ou em confinamento, as equipas começam a estar reduzidas, não chegam para as encomendas. Portanto, ajuizado é a malta ter juízo, ficar sossegado, não conviver, usar máscara, ficar em casa sempre que puder.

Só que, no meio disto, ainda muita sorte tivemos nós. Ouçam o que vos digo: muita sorte. Uma sorte do caraças.

Então não é que um pedregulho desencabrestado veio lá do infinito, pôs-se em chamas, destravado por aí afora, e por um triz não veio dar-nos uma traulitada no toutiço, abrindo, acto contínuo, um mega fuinho debaixo dos nossos pés, atirando com a malta toda para o mais inesperado e absurdo beleléu...? 

Caraças. Desta vez escapámos.

Por isso, já não vou queixar-me da burrice deste e daquele porque, na hora de levar com uma bola de fogo a 227.000 quilómetros por hora, não há cá burros nem espertos, nem cuidadosos nem grunhos. Vai tudo desta para melhor que nem dá tempo a olhar para o céu e perguntar: oh caraças, mas que raio de brincadeira é esta?

1 comentário:

Estevão disse...

… e nos lares teria sido bem pior se na Páscoa não tivessem dado a beijar a cruz às velhinhas e aos velhinhos. Agora, com o beijar do menino lá para o Natal, talvez a curva se achate. A curva do gráfico, entenda-se.