sábado, novembro 21, 2020

O perigo dos burros em tempos de pandemia

 



Quanto mais ouço os ignorantes a quem as televisões põem um microfone à frente mais me agonio. As televisões e as redes sociais são um perigo, estão cheias disto. Obama diz que a internet é um dos maiores riscos para a democracia e eu concordo. Charlatões e ignorantes são do pior que há. Não percebem nada, deturpam o que ouvem, propagam aldrabices e parvoíces de toda a espécie  -- e, pior, falam muito, falam em todo o lado; e o pior é que, quanto mais disparates dizem, mais os outros gostam de ouvir. O espaço público está invadido por parvoíces, asneiras, maldades. Em vez de haver opinião informada, sensata, há um ruído de fundo que inflama descontentamentos, descrenças, que alimenta a apetência por discursos simplistas, populistas.
Por exemplo, a que propósito (ou com que propósito) contratam um João Miguel Tavares desta vida? Alguma vez gente desta diz alguma coisa que se aproveite? Palermas que falam do que não sabem, que não sabem pensar, que opinam usando as patas e não os neurónios para tentar raciocinar. Mesmo o Ricardo Araújo Pereira, que é culto e não é burro, para que é que é contratado para dar opinião? Por vezes lá diz alguma coisa de jeito, em especial quando contraria o JMT, mas, na maior parte das vezes, cede à mais soez e gratuita maledicência na ânsia de apelar ao riso fácil. Falei destes mas são estes e mais dezenas deles e delas. As televisões cheias. E imagino as barbaridades que grassam nas redes sociais. Uma poluição insuportável.
Tudo o que é mentecapto gosta de ter de que dizer mal. Como nunca conseguem ver a floresta, vão andando às cabeçadas de árvore em árvore e, claro, vão acusando cada árvore em que se espetam. Não percebem que o problema é deles que não sabem orientar-se, que não conseguem ver; não conseguem perceber que, se forem de encontro a elas, se vão magoar. É escusado. Não percebem. Assim são os burros: por mais que a realidade lhes entre pelos olhos adentro eles não percebem.

Nisto da covid não há conhecimentos para poder dizer uma coisa hoje e dizer a mesma coisa passadas duas ou seis ou doze semanas. Há cientistas a seguir diversas linhas de investigação, por todo o mundo. Andam às apalpadelas. E é normal que andem. Este vírus é novo e, ao que parece, com um comportamento algo atípico. Por uma questão de partilha (a ver se, em rede, se chega lá mais depressa), as pequenas conclusões, algumas certas, outras nem tanto, vão sendo conhecidas. Mas alguém, a esta altura do campeonato, sabe alguma coisa ao certo? Creio que não. À medida que se vai sabendo mais algumas coisinha, vão-se adaptando as instruções. É o melhor que se consegue fazer.

Mas os burros não percebem isto. Os burros acham que o corona veio com manual de instruções. Ao fim de todo este tempo, ainda não perceberam que não. 
Por exemplo, ainda não se sabe porque é que, numa mesma casa, dos quatro habitantes, o marido, quarenta e tal anos, está positivo e seriamente doente, a mulher, da mesma idade, positiva e apenas doente, o filho positivo e completamente assintomático e a filha negativa. E isto está a acontecer com uma conhecida, tudo gente longe de pertencer a grupos de risco, saudáveis, com vidas saudáveis. O que há neles que os leva a que, perante o contágio, os seus corpos reajam de maneiras tão distintas? Ou porque é que um jovem médico, menos de quarenta, saudável e forte, e que trata todos os dias, desde há meses, doentes covid, sabendo os do's e os dont's e como tratar-se quando a coisa aperta, está agora seriamente doente? Que conclusão é que os burros, que sabem tudo, retiram disto? Face a isto, se fossem governantes, que recomendações emitiriam que fossem válidas para toda a população in saecula saeculorum?
Acham que a directora da DGS, antes que qualquer outra pessoa no mundo, deveria saber como prevenir o contágio. Não percebem que se os sinais e as recomendações da OMS vão num sentido, à falta de melhor informação é nesse sentido que se deve recomendar que se vá. Se, passado algum tempo, os cientistas e as evidências apontam noutro sentido, então é nesse sentido que as recomendações devem passar a ir. A isto chama-se inteligência. Ora, como é sabido, a inteligência é algo a que os burros têm aversão. Por isso, mal vêem qualquer coisa que não percebem, a primeira coisa que fazem é zurrar e dar coices.

Os burros acham que não: acham que se antes se pensava uma coisa, então, para não se sentirem baralhados, é nesse sentido que se deve continuar. Os burros não percebem que a coerência -- ou melhor, a inteligência --, quando se navega por mares nunca antes navegados, é ir ajustando a rota.

Os burros não percebem outra coisa: não percebem que quem governa tem que tentar traçar a bissectriz entre múltiplos vectores: o da saúde pública, o da economia, o dos recursos existentes, o da estabilidade social. Etc. Os burros não percebem -- porque geometria ou cálculo vectorial não é com eles -- que encontrar uma bissectriz nestas circunstâncias é impossível e que o melhor que se pode conseguir, em contexto de geometria variável, é ir fazendo iterações.

Os burros não percebem que isto, o que está a acontecer, esta pandemia, não é uma coisa simples que eles possam compreender. Se nem os inteligentes e estudiosos compreendem, como podem eles compreender? Portanto o que se espera é que os responsáveis pela comunicação social não dêem palco aos burros, sejam eles comentadores, comunicadores ou simples amadores. Numa altura destas, o ruído e a poeira só servem para atrapalhar.

E depois há alguns políticos. Refiro-me agora, em concreto, aos burros. Acham que há aqui matéria para se armarem em revolucionários -- como se a saúde pública em caso de emergência fosse tema com que se brincasse às liberdades. São uns irresponsáveis e, em matérias destas, a irresponsabilidade é imperdoável. 

Se não tivesse havido estas medidas mais restritivas que o estado de emergência permite, dentro de dias estaríamos com mais de dez mil infectados por dia e com o dobro no mês seguinte. Não há camas, não há médicos, enfermeiros, técnicos ou ventiladores que cheguem para acolher quem precisa numa extensão desta ordem de grandeza. Mesmo assim, com estas medidas e com estes números, a situação é dramática e mais dramática ainda vai ficar.

Os burros acham que a culpa é do desinvestimento no SNS. Burros. Não há -- nem aqui nem em alguma parte do mundo -- sistema de saúde apto a lidar com uma pandemia como esta, caso extremo, de dimensões imprevisíveis. Os recursos dimensionam-se -- aqui e em qualquer parte do mundo -- para as situações médias, admitindo-se a possibilidade de escalar dentro de percentagens razoáveis. Mais do que isso é desperdício. E o desperdício sai dos bolsos de alguém, mormente do dos contribuintes.

Um hospital é um edifício físico. Tem lá dentro enfermarias, espaços para cuidados intensivos, blocos cirúrgicos, salas de recobro, etc. Quando se intensificam os doentes, há alguma elasticidade. Por exemplo, há corredores  onde se podem ir pondo macas ao lado umas das outras. Até caberem. Mas, como não se quer misturar doentes covid com doentes não covid, a elasticidade não é tão grande quanto isso. Podem ainda montar hospitais de campanha no lugar de estacionamento. Certo. E os enfermeiros, médicos para tudo? Dizem os políticos burros e as histéricas do costume: contratem-se. Boa. Onde? Há médicos e enfermeiros no desemprego? Não me parece.

E quando há médicos, enfermeiros e técnicos infectados ou em quarentena e as equipas começam a diminuir? O que se faz? Vai buscar-se ao privado? Boa. E os doentes que estão nos hospitais privados? Vão para casa? Ou deixamo-los morrer? Ou será que os burros pensam que quem vai para os hospitais privados são só os ricos e, portanto, não há mal nenhum se quinarem? Se é isso, explico: sabem que os funcionários públicos, via ADSE, frequentam os hospitais públicos? Ou que as empresas pagam seguros aos seus funcionários e eles, mesmo os de mais baixos recursos, vão a hospitais privados? 

Agora mesmo ouvi um burro a dizer que acha mal que Marcelo tenha falado na 3ª vaga de covid lá para Janeiro ou Fevereiro. Insurgia-se, dizia que sabe lá o Marcelo se vai ou não haver uma terceira onda. Mas eu -- que não sou cientista nem bruxa -- daqui posso assegurar: se se aliviarem as medidas, nomeadamente se a malta puder dar largas aos afectos e desatar a matar saudades com ceias, abracinhos e todos juntos a abrirem os presentinhos no Natal, de Janeiro para Fevereiro a coisa dá um pinote que vai lá, vai. Chame-se terceira onda, pinote da curva ou desgraça da grande tanto faz, é uma questão semântica. 

Agora uma coisa eu continuo a dizer. Continuo a achar mal -- e aí critico Governo e Presidente da República -- a não existência de campanhas de divulgação em força, básicas, que entrem pelos olhos adentro dos burros e dos distraídos, e concertando-se com os canais de televisão para que haja uma permanente atenção a comportamentos de risco. 

Continuo a ver montes de gente de nariz de fora. Se o contágio nasce sobretudo de quem tem a boca de fora da máscara, seja porque falam, bocejam ou o que for, porque se expele com maior vigor pela boca, projectando as gotículas, o contágio dá-se, certamente, em quem tem o nariz de fora. Portanto, quer para evitar contagiar quer para evitar ser contagiado, o uso da máscara tapando boca e nariz é essencial, sobretudo quando se está em espaços fechados ou em espaços muito povoados, mesmo que ao ar livre. 

Hoje vieram entregar uma coisa cá a casa. O rapaz que a veio trazer não usava máscara. Quem o atendeu foi o meu marido que, quando lhe agradeceu, recebeu de volta uma tentativa de aperto de mão. Um caso entre tantos. Mesmo agora vejo nas televisões programas de debate em que não há distanciamento nem separadores de acrílico e, claro, não há máscara. Que exemplo estão a dar? 


Mas, enfim, vinha para aqui hoje para me divertir e não para isto. Mas passei pelo Expresso da Meia-Noite, pelo O último apaga a luz e pelo Governo Sombra e o que vi e ouvi tirou-me do sério. Mas também quem me manda a mim armar-me em masoquista? Querem lá ver que, na volta, a burra sou eu...?

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Não vá dar-se o caso de acharem que as imagens e a música lá de cima não são suficientes para não darem a vossa visita por perdida, permitam que partilhe mais um vídeo, desta vez com um pouco de dança. 

Nederlands Dans Theater (NDT) | Medhi Walerski -- 'SOON’ 
(sobre a voz de Benjamin Clementine)

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As pinturas são da autoria de Luigi Ontani e vêm na companhia de Bill Fay com Never Ending Happening 

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E um bom sábado.
Saúde. Força. Alegria.

11 comentários:

Maria Santana disse...

Subscrevo!

Anónimo disse...

Mesmo isto!

João Lisboa disse...

Mais respeito pelos burrinhos, sff.

https://opimedia.azureedge.net/-/media/images/grt/editorial/articles/magazine-articles/2012/01-01/the-lowdown-on-donkeys-and-mules/mules.jpg

João disse...

Carl Sagan, afirmava que vivemos numa sociedade absolutamente dependente da ciência e da Tecnologia (grandes motores da civilização e do bem-estar) mas que a maioria das pessoas é ignorante nestes assuntos. Ou seja, uma receita para a desgraça.
Em regra, até aqui passava para a sociedade conhecimento testado, verificado, com potencial de previsão e que era globalmente aceite pela comunidade científica. Isto leva tempo. O que se passou com o SARS-Cov2 foi o processo científico em directo nos média, “live”.
Seria preciso perceber o processo científico, os avanços, os ziguezagues e os becos sem saída, a validação e reprodução pelos pares, para a maioria das pessoas compreender o que se está a passar. Sobretudo perceber que informação não significa conhecimento. Informação pode ser um código zero/um. E também que o conhecimento é parcial, nunca absoluto e que a ciência é o domínio da dúvida, do cepticismo, da permanente correcção. Não afirma o que está certo ou o que está errado mas o que se conhece com graus distintos de certeza. Se a isto juntarmos, a divulgação da informação feita por leigos, a vaidade de alguns investigadores à procura de notoriedade mediática, a competição entre as big pharma (fazer ciência custa muito dinheiro) e os especialistas do “achismo” e do “bitaitismo” (para não mencionar os charlatães) a mandar as suas postas por todo o lado, o cenário para a confusão fica muito bem composto.

João Lisboa disse...

"O que se passou com o SARS-Cov2 foi o processo científico em directo nos média, “live”."

Exacto. Mas, sendo indiscutivelmente verdade que

"Seria preciso perceber o processo científico, os avanços, os ziguezagues e os becos sem saída, a validação e reprodução pelos pares"

e que

"o conhecimento é parcial, nunca absoluto e que a ciência é o domínio da dúvida, do cepticismo, da permanente correcção. Não afirma o que está certo ou o que está errado mas o que se conhece com graus distintos de certeza",

é preciso reconhecer que, em diversos momentos, a comunidade científica, provavelmente em consequência da

"vaidade de alguns investigadores à procura de notoriedade mediática, a competição entre as big pharma",

deu um péssimo contributo para a confiança indispensável na actividade científica. Receio bem que, mais grave do que os danos gerados pela panden«mia, tenha sido o tremendo recuo que, nesta matéria, aconteceu.

Um Jeito Manso disse...

Maria Santana,

Obrigada.

Um bom domingo!

Um Jeito Manso disse...

Anónimo,

Obrigada. Já somos sois, então.

Um bom domingo.

Um Jeito Manso disse...

Olá João (João Lisboa, neste caso),

Tem razão. Estive a todo o tempo a pensar escrever: sem desprimor para os burros genuínos, os de quatro patas, mas acabei por me esquecer. Tomara que nenhum me tenha lido. E a ver se ninguém do PAN também leu senão ainda fico mal vista também junto desse sector da sociedade...

Um bom domingo, João!

Um Jeito Manso disse...

João L, olá.

Gostei tanto do seu comentário, concordo tanto com o que escreveu, que o repesquei e puxei para o corpo do blog, incorporando-o no post que acabei de escrever.

Obrigada.

E um bom domingo, se possível rodeado de azul.

Um Jeito Manso disse...

João Lisboa, de novo,

Não sei se percebi o que disse mas, se percebi, não sou capaz de achar que a comunidade científica se tenha descredibilizado. De todo. A ciência tem os seus timings, por vezes os seus budgets, as suas limitações. A pressão da pandemia é outra coisa, quase cilindra as metodologias de investigação. E os media, que querem é notícias, num momento destes e com tanta imprevisibilidade e desconhecimento pelo meio, lançam a confusão em vez de tentarem perceber.

Sem ciência estaríamos todos no mato sem cachorro. Mas a ciência não é a palavra de deus. A ciência é um processo, uma descoberta, uma tentativa de aproximação. É preciso tempo e persistência para lá se chegar.

João Lisboa disse...

"De todo"

Neste caso, "a comunidade científica" a que me refiro é a OMS, as diversas autoridades de saúde nacionais, os inúmeros "grupos de cientistas" que "publicaram um estudo" e todos os incontáveis que em jornais, rádios, televisões e online fizeram filinha para botar opinião.

Se existe coisa que, pelo menos para mim, permite ter confiança imediata em alguém da área científica é a capacidade de dizer "não sei". Durante estes meses, isso foi uma raridade: toda a gente "sabia" alguma coisa. Bastava enxergarem uma câmara ou um microfone para "a ciência" descer sobre eles. De modo totalmente contraditório - às vezes da manhã para a tarde -, por vezes, até hostil (não esqueço o epidemiologista que dirigiu as operações na Suécia a dizer que não se importava de se transformar num "saco de pancada" devido aos seus pontos de vista "heterodoxos"), o que converteu o indispensável debate e confronto de hipóteses científicas numa arena de circo romano.

Muito feio. E com a terrível consequência de oferecer munições à trogloditagem anti-científica.