terça-feira, junho 02, 2020

A tessitura e o açauí







Para não ser preciso ir despejar o lixo ao contentor da estrada, separamos os plásticos para um lado, o vidro para outro, o cartão para outro e, quando saímos para ir ao supermercado ou para ir ver  a família, levamos para a reciclagem, para os contentores grandes que estão perto da estrada nacional. Os restos, os orgânicos, vou despejar lá em baixo, sob a caruma. Os animais comem-nos e, o que sobra, vai sendo revolvido na terra. Acho que fertiliza o solo, que aproxima os animais, e escusamos de andar a pôr restos que se degradam no contentor da estrada.

Mas, então, um destes dias ia eu à noite, às escuras, descalça, pé ante pé, com um pratinho na mão com cascas de batata ou de fruta, quiçá alguns ossinhos, e dou com um pirilampo a voar à minha frente, a alumiar-me o caminho. Nestas alturas, arrepio-me. Não sei se é emoção pura, se é o inesperado do dito hecho estético de que Borges falou:
La música, los estados de felicidad, la mitología, las caras trabajadas por el tiempo, ciertos crepúsculos y ciertos lugares, quieren decirnos algo, o algo dijeron que no hubiéramos debido perder, o están por decir algo; esta inminencia de una revelación, que no se produce, es, quizá, el hecho estético." 
Eu ali, a noite com aqueles seus sons que cruzam o silêncio, a lua a crescer no céu, os meus pés nus e cautelosos sobre a caruma e, à minha frente, ziguezagueando, um pirilampo. Emocionada, pensei: olha, o açauí veio ter comigo. E ia andando e dizendo em voz muito baixa, quase sussurrando: 'Açauí, açauí...', como se querendo falar com ele. Açauí, açauí...

E, desde aí, quando escurece, eu olho em volta e penso: 'Será que o meu amigo açauí vem visitar-me?'. E, sem que ninguém me ouça, eu murmuro Açauí.... açauí...

Ao mesmo tempo ocorre-me, de vez em quando: 'quem será que aqui veio dar-me a conhecer este outro nome do pirilampo?'. E ponho-me a pensar se será este, se aquele, se aquela, tentando perceber como será a pessoa que tão generosamente me ofereceu um nome para eu dar à irreal aparição que é um pequeno açauí voando na noite, um pontinho de luz em que dificilmente se acredita.

Hoje cheguei aqui e resolvi rever o comentário para ver se havia alguma pista que me deixasse antever quem seria. Li, reli e não queria acreditar. Afinal não é açauí coisa nenhuma, é arincu. Reli. Arincu? Se o que ali está escrito é arincu, como é que eu registei açauí...?

Fui agora verificar o significado de açauí e, para ainda maior espanto, é palavra inexistente. E, no entanto, o pirilampo lindo que cruza a noite para deixar que eu o acompanhe parece que fica melhor vestido de açauí do que arincu. Não sei se alguém pode registar o nome ou se fica só meu. É um arincu mágico que muda de nome quando chega perto de mim, transforma-se em açauí.

Enfim. Não liguem. Coisas minhas.

É como tessitura. Li e pensei na La Dame à la licorne. Fiquei a pensar no que tinha lido e a pensar que a palavra certa ali era mesmo aquela, palavra que descreve bem tudo o que envolve coisas como  à mon seul désir (que eu, volta e meia, confundo com à mon seul plaisir). Tive vontade de ir buscar A Dama e o Unicórnio para reler alguns poemas, para ver as tapeçarias, para perceber bem as declinações de desejar e ser desejado: a primeira, a segunda e a quinquagésima derivada. 

Tessitura. Ponto a ponto, passo a passo, o fio que se entrelaça, que desliza e prende e volteia e se cruza com outro fio, de uma outra cor, o ponto e outro ponto, a tessitura perfeita, o desenho a anunciar-se, a insinuar-se. 

A Dama seduz
Ou o Unicórnio entrega-se?

No jogo da sedução
Quem usa a taça e a seta?

Eu capricho na conquista
no fogo da sedução

Sou Dama da minha vida
deixo nela a minha pista

Senhora de meu desejo
de meu prazer e paixão

Agora, estando eu nisto, assaltou-me a dúvida: tessitura? ou tecedura? Reli. Tessitura. Fui conferir. Pois, li uma coisa, tresli e pensei noutra. E, no entanto, agora parece-me que são sinónimos. Ou uma outra forma de dizer a mesma coisa. 

Aliteração. Alitero o sentido das palavras, aconchego-as a mim, ao fogo da minha paixão, ao capricho da sedução, teço e entreteço e enlaço e deslizo o laço e em alvoroço escondo a taça e espero que o prazer das palavras de mim não faça sua escrava porque não nasci para serva mas para senhora da minha vontade e, mesmo quando me desnudo, nunca mostro o meu corpo nu mas a minha alma que apenas ilude uma nudez que nunca é real. E agora que o escrevo penso que talvez aliteração também não seja a palavra certa mas isso agora também não interessa para nada até porque é capaz de não haver palavra para isto de nascerem asas no corpo das palavras. Portanto, adiante.





E um dia bom para si que aí está desse lado

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