Não me posso queixar. Pelo contrário. Mas a gente às vezes queixa-se não porque tenha ponderosas razões de queixa mas porque faz parte da nossa natureza de gente. A gente queixa-se. Às vezes por razões grandes, outras por razões pequenas, outras por razões permanentes, outras por razões ocasionais.
Outra coisa: não se trabalha apenas porque disso dependa a nossa sobrevivência. Trabalha-se porque trabalhar faz parte da nossa natureza.
Pelo menos da minha faz. Comecei a trabalhar cedo e sempre trabalhei muito: estava a dar aulas em horário completo e, ao mesmo tempo, a fazer uma licenciatura que só não me punha a cabeça em água porque eu relevava os pesadelos que quase se abatiam sobre mim. Daí passei para um lugar onde trabalhava sem horários, sob orientação de um super especialista que vinha dos States para me guiar, e, ao mesmo tempo, andava em transportes, grávida até ao fim da gravidez, uma barriga de impor respeito. Depois o segundo filho, a primeira ainda pequenina, o trabalho a levar-me por todo o país. O meu marido também sobreocupado, muitas vezes fora. Toda a vida, com muito trabalho, a garantir a presença e a atenção junto dos meus filhos, razão primeira de tudo. Faz parte de mim ser assim.
Há quem trabalhe pouco, se arraste, se queixe de tédio. Nunca me passou pela cabeça ser apenas dona de casa ou viver à custa de alguém. Até a mesada dos meus pais eu tinha dificuldade em aceitar. Sou independente por natureza, trabalhadora por natureza.
Pelo menos da minha faz. Comecei a trabalhar cedo e sempre trabalhei muito: estava a dar aulas em horário completo e, ao mesmo tempo, a fazer uma licenciatura que só não me punha a cabeça em água porque eu relevava os pesadelos que quase se abatiam sobre mim. Daí passei para um lugar onde trabalhava sem horários, sob orientação de um super especialista que vinha dos States para me guiar, e, ao mesmo tempo, andava em transportes, grávida até ao fim da gravidez, uma barriga de impor respeito. Depois o segundo filho, a primeira ainda pequenina, o trabalho a levar-me por todo o país. O meu marido também sobreocupado, muitas vezes fora. Toda a vida, com muito trabalho, a garantir a presença e a atenção junto dos meus filhos, razão primeira de tudo. Faz parte de mim ser assim.
Há quem trabalhe pouco, se arraste, se queixe de tédio. Nunca me passou pela cabeça ser apenas dona de casa ou viver à custa de alguém. Até a mesada dos meus pais eu tinha dificuldade em aceitar. Sou independente por natureza, trabalhadora por natureza.
Não digo que seja virtude. Na volta é mais inteligente trabalhar pouco e viver à conta. Mas, na volta, a inteligência nunca foi o meu forte.
Uma vez, o Mourinho saíu de um clube qualquer com uma indemnização de milhões. Nesse dia eu estava a almoçar com um dos homens mais ricos do país. Mas desse homem, se a gente se distrair, ninguém percebe a dimensão da sua riqueza porque também trabalha que se farta. Havia uma televisão no bar onde se esperava e ficámos ali enquanto não chegavam outros dois. Vi então alguém a perguntar ao José Mourinho onde é que ele ia trabalhar a seguir e ele a dizer que ainda não sabia. Aquilo fez-me impressão. Então, ao almoço, ainda conversando sobre isso, distraída, eu disse: 'Como é que uma pessoa que, de repente, recebe assim uns milhões ainda precisa de trabalhar?' Então, ele, aquele que estava à minha frente, encolheu os ombros e sorriu. Insisti: 'Mas não acha?'. Ele, ainda sorrindo, quase como se confessasse uma fraqueza: 'Sabe, trabalha-se porque sim, porque não se sabe fazer outra coisa, porque é como uma pessoa se realiza, porque se gosta do que se faz, porque não se sabe estar sem trabalhar'. E eu olhei para ele sem saber o que dizer, de repente recordada da sua grande fortuna. Sorri também porque ele estava a falar dele próprio e porque sei bem como ele estava a falar verdade.
Fiz caldeirada de asa de raia para o almoço. Com abundante cebola, tomate bem maduro, batata normal e batata doce, salsa, azeite e um pouco de sal. Sobrou um bocado. Então, para o jantar, retirei o peixe, tirei as espinhas (ou melhor, aquela cartilagem fina que, por acaso até gosto de trincar). Juntei um pouco de água, um fio de azeite e moí tudo bem. No fim juntei o peixe, um pouco de coentros e uma folhinha de hortelã. Tinha cozido ovos. então, em cada tigela de sopa, juntei um ovo picado. Estava uma maravilha. E ainda sobrou um pouco.
Também andei a varrer lã fora. Debaixo do telheiro, debaixo dos bancos, o jardim, a zona das árvores de fruta perto da casa, o caminho desde o portão. Apanhei carros de folhas secas e terra que fui despejar ao fundo, na zona dos pinheiros. Agora tenho as mão doridas e secas.
Este sábado irei fazer uma ou duas máquinas de roupa, fazer limpeza ao estúdio, pôr roupas a arejar. Não sei ainda o que vou fazer para o almoço. Não sei se favas guisadas com entrecosto se frango no forno.
Não posso dizer que trabalhe muito pois sei que há quem trabalhe muito mais, em condições muito mais duras, debaixo de aflições, se calhar sem gostar do que faz, se calhar com medo de, ainda assim, perder o trabalho que tem.
Mas não se pode pensar assim pois há sempre quem esteja pior. Pode é ser-se sincero. E, por isso, falo com sinceridade quando me queixo do que me incomoda ou quando me confesso cansada.
Podia, é certo, deixar de trabalhar. Mas deixarei alguma vez de trabalhar? Faria o quê se deixasse de trabalhar? Varria e lavava o chão sem parar, cavava, podava árvores, cozinhava, escrevia, sei lá.
Lembro-me agora de um outro amigo, alguém com quem gostava muito de conversar e com quem tinha longas e saborosas conversas, e de quem, pelas circunstâncias da vida, acabei por me distanciar um pouco. Uma vez -- tinha ele feito cinquenta anos e, para o festejar, tinha ido jantar a Paris -- disse-me: 'Sempre pensei que só trabalharia até aos cinquenta anos. Agora que aqui cheguei, acho que vou mudar de ideias'. Com quatro filhos em idade escolar, dois a estudarem no estrangeiro, cada um em seu país, outra a mudar de curso pela segunda vez e sempre desorientada e uma outra a passar um ano a levantar a nota para tentar entrar no curso que queria, perguntei: 'Mas com as despesas que tem... E não consegue reformar-se tão cedo. Como faria? Desempregava-se? Vivia de quê' E ele: 'Tenho com o que viver bem até morrer'. Disse-me que não apenas tinha uma verba considerável aplicada como muitas casas e garagens arrendadas. Acrescentou: 'Não preciso de trabalhar para nada, apenas para me manter ocupado. E faço o que gosto.'. Uma vez eu estava a falar de um restaurante muito bom, sempre cheio, disse-me ele: 'Mas sabe que esse restaurante é meu...?'. Não sabia, não fazia ideia. Ele pensava que sim, que já tínhamos sobre isso. Mas não. Era apenas mais um dos seus investimentos. Um dia disse-me que estava todo contente porque tinha satisfeito um capricho. Perguntei: 'Uma mota?'. Riu e disse que não. 'Um barco?'. Não. Acabou por me contar que era um Porsche. No dia seguinte apareceu numa mota, uma mota brutal. Era isso, a mota já ele a tinha. No entanto, trabalhava como um normal assalariado. E ainda trabalha.
O trabalho não é apenas uma fonte de rendimento: é uma forma de se viver, é uma fonte de dignidade, é um motivo de realização.
Pelo menos, assim o penso. Mas isso, claro, cada um sabe de si e cada um que pense pela sua própria cabeça.
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É como escrever.
Escrever para quê? Porque que é que se escreve? Para quem se escreve?
Escrever para quê? Porque que é que se escreve? Para quem se escreve?
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Pinturas de Diego Rivera e música de Ennio Morricone, banda sonora de Novecento.
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Um bom sábado. Saúde.
7 comentários:
Já que me cabe o contraditório …
… e logo a mim que, sempre me ocupando com trabalho, tendo a analisar o que nele é fuga para a frente,
aqui vai o ensinamento da sabedoria popular, válido até para dançar, com uma abordagem mais profunda que o «Je ne veux pas travailler"» dos avec’s ou aquelas máximas «se o trabalho dá saúde que trabalhem os doentes»:
https://www.youtube.com/watch?v=CEaQr9c6LVc
Não existe essa coisa de deixar de trabalhar. Existe, muitas vezes, é o anseio de liberdade. De trabalhar em algum que nos realize minimamente.
A quantidade de trabalho realizado no sentido "convencional" é uma medida altamente enviesada, focada em dados objetivos do sistema que rege a sociedade. Curiosamente, nem mesmo nesse sistema é fácil de medir (veja-se por exemplo a dificuldade de "mensurar" a produtividade).
A redistribuição de rendimento não chega. É preciso redistribuir a quantidade de trabalho coagido que é requerido a cada um de nós.
Abraço!
Bom fim-de-semana.
Minha Avó dizia Trabalho é fonte de vida.
Eu sou bem prova de isso mesmo. Em 39 anos de trabalho só estive de baixa médica devido ao facto de ter sido mãe.
Devido a uma insolvência fraudulenta, vi-me privada de trabalho aos 62 anos.
Foi duro. Alguem com força e vontade de trabalhar, gostando do que fazia e sem hipotese de um novo emprego. Ser-se demasiado velha para trabalhar e ainda nova para se reformar, abriram-se -me as portas a doenças cujos sintomas nunca se manifestaram.
E lembrava-me muitas vezes do que dizia a minha avozinha. O trabalho dá saude.
Um beijinho e Bom fim de semana.
Finalmente chegou a minha casa o calorzinho da fogueira que o marido da UJM fez para queimar o silvado. Espero agora o cheiro a favas estufadas para abafar de vez esta quarta-feira de carnaval travestida de Domingo ..
https://www.youtube.com/watch?v=RLxmudlRyz4
https://www.bertrand.pt/livro/o-trabalho-um-valor-em-vias-de-extincao-dominique-meda/9600194
Fará o trabalho parte da natureza do ser humano?! Talvez não, talvez não, como aliás muito poucas coisa farão. Aquilo a que estamos habituados não é a nossa natureza.
De anónimo para anónimo, salvo seja,
voto neste:
http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/direitopreguica.pdf
Era neste que estava a pensar no meu comentário ali em cima.
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