Todo o santo dia choveu. Mas choveu muito. Muito, muito. Água forte ao longo de todo o dia, água escorrendo por todo o lado.
E o dia muito escuro, muito frio. Não consegui sair de casa. E tive muito frio. A casa é grande, difícil de aquecer. Tenho que estar com um aquecedor por perto. Noutra ponta da casa está o meu marido, também com um aquecedor. A princípio da manhã, acerquei-me de uma porta de vidro que dá para a rua e por onde entra mais generosamente a luz. Relativamente perto dele. Mas, às tantas, estávamos os dois em vídeo-conferência, cada um na sua, uma estereofonia difícil de orquestrar. Levantei-me e fui para longe, para um canto resguardado. Mas mais escuro, mais frio.
No primeiro dia de teletrabalho, ele abriu a escrivaninha que está ali ao canto e, sem hesitação, aí se instalou e aí se mantém, dia após dia, de manhã, à tarde e, se necessário for, à noite. Eu já corri meia dúzia de sítios, em busca do melhor lugar. Ou me dá o sol de frente, ou fica numa zona de sombra e fica escuro mais cedo do que é suposto, ou está numa zona mais de passagem, ou isto, aquilo e o outro. O meu marido pasma com a minha procura pelo lugar ideal. Ri, encolhe os ombros, acha uma maluqueira. Não ligo.
Claro que, quando em videoconferênia, desfoco o fundo, senão a procura teria que ser ainda mais exigente.
Mal me levantei, depois de ver os primeiros mails e de ter encaminhado um tema, fui a correr para a cozinha e pus a sopa a fazer. Sopinha de legumes temperada com ramalhete de hortelã.
Antes de almoço, mal me despachei da última reunião da manhã, fui de novo para a cozinha e, num tacho, coloquei azeite, cebola cortadas aos bocados, três dentes de alho e frigi levemente. Juntei cinco tomates maduros de tamanho médio, um bocado de alho francês às rodelas largas, uns quantos feijões verdes cortados aos bocados, salsa que tinha congelada. Deixei amolecer. O cheirinho começou a desenvolver-se. Depois juntei dois lombos de salmão que tinha deixado a descongelar. Passado uns cinco minutos, juntei um pouco de sal e duas quantidades de água em relação à quantidade de arroz basmati que iria colocar a seguir. Quando a água ferveu, juntei, então, o arroz. Ao fim de uns oito a dez minutos, o arroz tinha absorvido o caldo. Desliguei o fogão, destapei o tacho, deixei respirar. Um cheirinho apetitoso a envolver a cozinha. Não desfazendo, ficou bem bom. E ainda sobrou um bocado que comemos ao jantar, depois da sopa.
Logo a seguir, voltámos ambos ao trabalho. Não gosto de não dar um tempo a seguir à refeição. Parece que a comida nem aterra nem acama. Mas teve que ser. Foi um dia estrafegado para ambos. Lá do fundo, o telefone não parava de tocar e, no intervalo, chegavam-me vozes de toda a espécie e feitio. E eu na mesma, atarefada, a casa invadida por sucessivas meetings. Novos tempos.
Logo a seguir, voltámos ambos ao trabalho. Não gosto de não dar um tempo a seguir à refeição. Parece que a comida nem aterra nem acama. Mas teve que ser. Foi um dia estrafegado para ambos. Lá do fundo, o telefone não parava de tocar e, no intervalo, chegavam-me vozes de toda a espécie e feitio. E eu na mesma, atarefada, a casa invadida por sucessivas meetings. Novos tempos.
Ao fim do dia, quando pensava que já pouco faltava para encerrar o expediente, ao receber uma chamada, decidi que estava na hora de fazer a transição. Abri uma janela que é mais abrigada e fiquei, de janela aberta, a ver e ouvir a chuva em directo, quase a senti-la. Enquanto tinha ouvido o telemóvel a tocar, tinha ido a correr buscar a máquina, pendurei-a ao pescoço e, assim, enquanto falava sobre o dilúvio de pouca sorte que ameaça desabar sobre a tesouraria das empresas e sobre mudanças que são necessárias nas estratégias e nas estruturas organizativas, olhava as gotas e apontava a objectiva para captar a beleza límpida do que o meu olhar alcançava.
Do outro lado, um colega partilhava as suas dúvidas e preocupações e eu referia alternativas e a coragem que é necessária para enfrentar decisões que aí estão para ser tomadas mas, enquanto isso, a minha alma já estava a voar de mim, já estava em busca dos verdes e dos pássaros e de tudo o que é independente das conjunturas. Ouvia-me e parecia que estava a ouvir outra pessoa. Nessas alturas desconheço-me.
Mas o dia foi bom: os números covidianos foram animadores, as notas que já chegaram de dois dos meninos muito boas, meus meninos mais queridos, um projecto de uma das meninas crescidas foi aceite como altamente promissor, e é, os telefonemas mostraram os meninos a brincarem nas respectivas casas, todos bem, bem dispostos, o meu bebé mais lindo, mais lindo, já tão crescido e a falar como um rapaz grande, os meus pais também. Tudo é frágil e nada é garantido e eu, a cada instante, penso nisso. Mas a gente vai levando. E, quando está tudo bem, sinto-me agradecida e feliz da vida.
Já vi que vai continuar a chover forte e feio até de manhã desta terça-feira e que depois vai aliviando até à hora de almoço e que só volta a chover na quarta-feira. Gosto da chuva. A chuva lava a terra, lava o mundo, lava as almas. Claro que tanta chuva, quando a gente está a trabalhar fechada em casa, acaba por ser uma coisa confinante. Mas não faz mal, não é problema, não é tema. A chuva é bonita, é boa, deixa tudo limpinho e luzidio e a terra fica com cheiro de mulher fértil e os musgos ficam grandes, macios, de uma cor requintada de veludo antigo.
Há pouco estava a fazer a lista das compras do supermercado: escrevi 'carnes, legumes e enchidos para fazer cozido à portuguesa'. Quando estava a escrever, e juro que é verdade, um plim no whatsapp. Uma fotografia. Um big tabuleiro com croquetes, uns cilíndricos e outros bolinhas. Como legenda que eram croquetes de cozido. Dizia o meu filho, chef de mão cheia, que eram bons mas difíceis de pôr bonitos. Fiquei a salivar. Logo de seguida, um plim da minha filha, a pedir que lhe dissessem receita simples de cozido para encomendar ingredientes para fazer cozido pelo Páscoa. E eu fiquei a olhar para o telemóvel: de repente, o cozido à portuguesa estava na convergência das nossas ideias. Achei curioso. E bateu-me uma saudade deles. Se no próximo domingo houvesse almoçarada em minha casa, como costuma haver, perguntar-lhes-ia se achavam bem um cozido à portuguesa e, pelo que vejo, haveria de merecer o apoio de todos. Mas paciência, este ano é um ano diferente e enquanto tivermos todos saúde para nos batermos com um belo cozido tudo estará bem.
Nestes dias em que estamos longe, destas pequenas coisas se vai fazendo a nossa proximidade.
E destes pequenos nadas se vão fazendo os nossos dias. Um após outro. A caminho do que será a nova normalidade.
Nestes dias em que estamos longe, destas pequenas coisas se vai fazendo a nossa proximidade.
E destes pequenos nadas se vão fazendo os nossos dias. Um após outro. A caminho do que será a nova normalidade.
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La lluvia tiene un vago secreto de ternura,
algo de soñolencia resignada y amable,
una música humilde se despierta con ella
que hace vibrar el alma dormida del paisaje.
Es un besar azul que recibe la Tierra,
el mito primitivo que vuelve a realizarse.
El contacto ya frío de cielo y tierra viejos
con una mansedumbre de atardecer constante.
(...)
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Um bom dia a todos.
4 comentários:
Bem, UJM, ontem foi o dilúvio, da uma tarde às oito da noite sem parar, mas aqui frio, nem por isso.
Tanta comezaina boa, aqui em casa também andamos inspirados nos cozinhados.
Um dia rico dos pequenos nadas que tanto nos alegram.
Olá Francisco,
Mas esta terça-feira já esteve algum sol, uma temperatura mais amena. Alguma primavera a espreitar. Bom apetite aí por casa.
E um dia feliz, apesar de tudo. Resguarde-se, Francisco!
E como se faz para seguir este blog?
Olá Evandro,
Pois não sei. Quando consulto as estatísticas vejo que até tenho alguns seguidores mas não faço ideia de como o conseguiram.
Mas gostava de saber...
Um dia feliz para si.
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