quarta-feira, abril 22, 2020

Agruras de uma criatura em dia não muito sim





A questão é que hoje não estou em forma: dormi mal a noite passada e, por isso, estou perdida de sono. Em cima disso, dói-me a garganta. Há tempos, a minha mãe disse-me que costuma curar as dores de garganta gargarejando com água morna salgada. Hoje o meu marido disse que, no outro dia, lhe doeu a garganta e experimentou a mezinha da minha mãe e que, curiosamente, ficou logo bom. Mas não me afoitei, acho que sou capaz de não me sair bem, às tantas ainda me agonio, sei lá. Por isso, estou para aqui sempre a adormecer e com dores de garganta. Também sinto uma afta na ponta da língua o que igualmente me incomoda. E a mão ainda me dói. Diria que o meu corpo se descompensou, seja lá o que isso quiser dizer.

Como sou muito somática, toda eu corpo, se alguma coisa em mim se manifesta assim, logo eu fico nula, sem nada dentro, muda, nada que dizer. Não existe mente nem psique que resista a um corpo em oposição. Isto em mim, claro. Que há-de haver gente, muitos de vós, em que, mesmo com o corpo desfalcado ou insurrecto, a mente e a psique se mantêm nos eixos, segurando o equilíbrio de tudo. Eu não. Eu apeio. Eu cedo. Eu baqueio. A mente e a psique dissolvem-se no ar e sobra o corpo em estado de desagrado.

Portanto, como se vê, estou aqui sem tema, sem vontade, incapaz de prosa.

E os dias também não ajudam. Estou entre fogos cruzados, entre indecisões que não são minhas, entre diferentes pontos de vistas, entre muitos trabalhos, e, volta e meia, quando me sinto quase cercada, com alguma tentação pela indiferença. Por vezes, acontece sentir-me quase atordoada. E o mau tempo e o frio não passam. E eu, que gosto tanto de calor e de pouca roupa, ando encasacada, de meia grossa, metida em casa e a casa fica escura porque não há sol a vir lá de fora. Hoje, por acaso, o sol, a espaços, até deitou os pauzinhos de fora, raiou um arzinho de luz. Mas foi coisa pouca: logo acinzentou, o ar frio, o vento a fazer adernar árvores e arbustos. E o telefone sempre a ocupar o espaço. 

Hoje o meu marido saíu-se com uma. Disse aquilo em que já tantas vezes pensei em segredo. Claro que, mal ele falou, cortei cerce. Que não, que nem tal me passa pela cabeça, que ideia, nem vale a pena. Mas, em segredo, digo que é coisa que tem passado pela cabeça, sim. Mas sei que não, que não é a hora. Ademais, até me esqueci de jogar no euromilhões. Portanto, adiante.

Ao fim do dia, enquanto falava ao telefone, fiz fotografias e sempre à mesma coisa, a primavera a chegar a medo, as flores, as cores,  os verdes. E fui ficando com a ideia que estavam bonitas, as fotos. Por vezes procuro a abstração. Tenho a ideia de que a perfeição há-de ser abstracta. É como um grande amor. Um grande amor há-de ser sempre impreciso, indefinido, inexplicável, intemporal. Vou a andar e antevejo uma mistura de tons, a luz transparecendo difusamente. Aponto a objectiva sem querer a precisão, dispensando o enquadramento. Quero apenas o momento, o injustificável momento.

Mas agora não me apetece ir à procura da máquina. Pousei-a por aí, não sei onde. Não é hora de enveredar por expedição. Amanhã há-de aparecer.

Estou a escrever, sentindo que não deve ser fácil encontrar um fio neste vadio vaguear e, ao mesmo tempo, vejo-me incapaz de me organizar. Não consigo, não quero. Tenho a ideia de que, se um dia, escrever um texto completamente desprovido de sentido, sentirei que estou quase lá. Um texto como uma mancha imprecisa, uma mistura, um instante, um segredo guardado, uma sombra esquiva deslizando na página.

Sei que tenho leitores muito racionais, muito cultos, muito disciplinados e imagino como devem sentir-se descoroçoados perante coisas assim, com vontade de cá não voltar a pôr os pés. Percebo-os. Tenho pena de não conseguir atinar, gostava de estar à altura dos mais exigentes. Enquanto escrevo, vejo-me no desconcerto com que devo estar a ser vista. E, no entanto, o sono, a dor de garganta, a afta, o cansaço e uma certa saturação impedem-me de tentar encontrar a disciplina que daria um rumo nisto. Nada a fazer.

(Mas, para dizer a verdade, também não me importo por aí além. Maluco que é maluco nem sabe quão maluco é. Pior: maluco que é maluco inventa desculpa para ser assim).

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O que posso dizer é que espero que, pelo menos, gostem deste vídeo:

David Hockney sobre Vincent van Gogh



E também deste.


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As fotografias são de © Stefan Fähler e vêm ao som de Leonard Cohen interpretando The Hills.

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Desejo-vos um dia bom. Saúde.

7 comentários:

CSC disse...

Pois eu achei tudo muito bem e as ideias para lá de bem articuladas. Talvez por serem também minhas me seja tão fácil ler a entrelinhas e os desvios. Também eu me sinto sem ar, no meio de tantos pontos de vista, no meio dos fogos cruzados e de tantas outras coisas que não se podem dizer. Sem ar. Completamente sem ar.
Ainda ontem, já 18h00, eu a fazer o grande esforço de cantar em francês na minha aula de canto por vídeo-conferência e o telefone a insistir numa legislação, numa vírgula, num "e"... e eu a suspender tudo, por meia hora de oxigénio, para desenhar um ".. ce dessin il le fait; trait pour trait; à partir d'un portrait".

(tenho lido os diários deste blog umas vezes na cadência certa, outras de "atacado". posta a fase de enamoramento, é oficial: estou rendida. gosto muito. obrigada pelos escritos.;-))

aamgvieira disse...

De manhã passo sempre por aqui, pela escrita mas também pela escolha criteriosa das imagens e das músicas.

AAMGV

Um Jeito Manso disse...

Olá CSC,

Aula de canto? Em francês? Conte-me tudo que vou gostar de ouvir. Para já, já fui atrás do seu blog. Tenho que explorar. Acho que vou gostar.

E gracias pelas palavras simpáticas. É bom saber que o que se escreve à noite, numa sala meio às escuras, numa casa no meio do nada, é bem recebido por quem, longe, sem nos conhecer, nos lê.

Dias bons para si, apesar de tudo. (São tempos difíceis e que parecem inexplicáveis, não é? Mas a gente habitua-se e há-de encontrar uma maneira de sair desta com a cabeça em bom estado.)

E obrigada eu, CSC.

Um Jeito Manso disse...

Olá Aamgvieira,

Gostei de ler o que escreveu. Tenho esta ideia de que escrever aqui faz mais sentido se conjugar palavras, imagens, música e, por vezes, quase gasto mais tempo a escolher as imagens e a música do que a escrever. Mas também não me importo pois, enquanto ando a escolher, estou a ver e a ouvir e isso ajuda-me a acabar os dias em beleza.

Muito obrigada. Espero ir correspondendo.

Um dia bom para si, AAMGV.

CSC disse...

Pois é verdade: aulas de canto semanais e sem falha. Na passada 3.ª-feira chegaram-me, em francês, quis o Professor que fosse assim, por vídeo-chamada do whatsapp. Estes tempos modernos - e estranhos - têm destas coisas. Se a curiosidade se adensar, estas aulas de canto também chegam aí a essa "casa no meio do nada".:-)
O canto está para mim como a fotografia está para esse lado. É um dos meus hobbies.
E sim, fiquei muito contente por ter espreitado o meu VeB. Escrevo apenas e só para mim mesma; é de tal ordem que por vezes os tais versos nem me chegam a sair da cabeça.. outras vezes saem, mas cada vez mais espaçados. Visitando, espero que goste. :-)

Um abraço,
CSC

Um Jeito Manso disse...

Olá CSC

Sabe aquilo de 'o que gostava de ter diferente em si'? Eu gostava, por exemplo, de ter boa voz. Não tenho. Gostava imenso de saber cantar bem. Mas não. Tenho voz para falar baixo. Gosto imenso de música mas a voz não acompanha. A minha filha, sim, canta bem. E ainda não há muito andou a ter aulas de canto.

Talvez por eu não dar uma para caixa, admiro tanto o talento dos outros. Quem canta seus males espanta. E mais do que isso. Quem canta sai de si. Imagino eu.

E com que então também é caranguejo? Muito bem. Já somos duas.

Abraço!

CSC disse...

Ora então, a confissão das confissões: eu também não canto bem. Nada bem, mesmo. :-) Mas tenho em mim este sonho de criança e decidi dar-lhe corda. Canto num coro desde 2016 - isto sim é supremo - e para não fazer muito má figura, aposto nestas aulas de canto que muito me têm ajudado. Até já canto a solo. :-)

Quanto a ser caranguejo, o que terei dito para gerar a confusão? Não sou, não, sou peixes. :-).

Uma 6.ª-feira à maneira.

Um abraço,
Carla