quinta-feira, fevereiro 06, 2020

O amor entre mulheres





No outro dia achei um piadão a uma coisa que li. Dizia-se que com isto da inclusão e das minorias e das gordas e das peludas e dos gagos e dos vesgos e dos carecas e dos esqueléticos e dos obesos e dos narigudos e das bichonas e dos tatuados de alto abaixo (e sei que estou a fazer uma misturada mas façam o favor de perceber a ironia) e de só contratarem gente feia e estranha para os anúncios, qualquer dia os bem parecidos não têm lugar em lado nenhum. 

Hoje ao estar perto de um grupo de jovens mulheres fiquei a olhar para elas com algum espanto.


Quando eu tinha a idade delas gostava de me arranjar bem, de me sentir bonita. E, agora que tenho idade para ser mãe delas, ainda gosto. Nem em casa eu ando como elas andam. Estas, todas mal enjorcadas, sem pitada de graça, todas muito eco, todas muito sustentáveis, ensimesmadas, sempre com conversas muito engajadas, parecem-me uma seca. Mas é capaz de ser a nova tendência. Apeteceu-me dizer-lhes: 'Ó meninas, mas que atraso de vida é este? Qualquer dia estão velhas sem nunca terem sido novas...'


Bem, mas o que eu queria dizer não era bem isto, o que queria dizer é que ainda bem que o mundo começa a ser inclusivo para toda a gente. Pelo menos nos lugares mais cosmopolitas.

Hoje vi duas mulheres, por sinal muito elegantes e femininas, nada do género alternativo, sustentável ou intelectual de esquerda, por sinal nada como as do grupo que antes me tinha chocado pela forma indiferente e mal amanhada como andam. Estava a vê-las e a pensar: são advogadas. Muito bem vestidas, bem penteadas, boas carteiras, todas fashion, seguras de si. E, no entanto, estava eu parada no semáforo, vi-as darem a mão, depois encostarem-se e depois beijarem-se na boca. E lá atravessaram a rua, apaixonadas como um casal que descobre o amor. Achei bonito. Havia nelas qualquer coisa de selvagem.


Eu que tenhos os meus genes todos hetero e que só de pensar na perspectiva de um contacto sexual com uma mulher já me encolho sentindo como que repulsa, não me sinto nem um bocado chocada com as manifestações de amor homossexual. Cada um é como é e deve poder ser como é, como lhe apetece. Parece-me uma violência insuportável alguém ter que forçar o que não é ou esconder o que é.

Há algum tempo, a demonstração pública de afecto entre duas mulheres  seria impensável. Agora, ali iam as duas a rir, apaixonadas. E as outras pessoas nem aí. Tudo natural.


Somos feitos de preconceitos, crescemos sendo amestrados para ter medo, para evitarmos o pecado, pensando que tudo é pecado, somos domesticados para nos refrearmos, para acusarmos os outros, para censurarmos, para repudiarmos os que ousam ou que, simplesmente, são diferentes. Em cima disso, os homens são treinados para serem fortes, invulneráveis, para esconderem as emoções, para não aceitarem derrotas. Os homens são capazes de sacrificar uma vida inteira para evitarem uma situação em que podem ouvir um não. Os homens temem o não como quem tome ser envenenado por uma cascavel. As mulheres, por outro lado, temem a censura, temem que as associem ao desfrute, e, por isso, inventam mil pretextos para se furtarem ao convívio ou, sobretudo, à entrega sem reservas. Outras temem que as achem timoratas e entregam-se à maluca, sem cabeça, sem tino, sem recuo, estatelando-se a torto e a direito e achando que a culpa das sucessivas derrotas é sempre toda dos outros. 

Sei que só quem sofre e quem é rejeitado é que tem credibilidade para falar de coisas assim. Portanto, não tendo eu experiência de sofrimentos de amor e nunca tendo sido rejeitada, ninguém me leva a sério neste tipo de conversas. Começam por não acreditar. Acham que toda a gente tem que padecer e que quem diz o contrário é mentiroso ou mentecapto. 

Não quero saber: digo o que é.

Já fiz sofrer e já rejeitei (coisa de que não me orgulho e que não me trouxe felicidade -- mas que teve que ser) mas nunca tive desgostos de amor. E, no entanto, não me sinto menos habilitada a interpretar a vida do que os que sofrem agruras. Por outro lado, também não me sinto habilitada a dar conselhos. De resto, o que posso dizer é que não me vejo cercada de pecados, não tenho medo, ouso e não complico. E, no que me é importante, não cedo, mas, no que é irrelevante, estou-me nas tintas. Quase que esse poderia ser o meu lema de vida. É fraco lema, eu sei, mas eu acho que lema que é lema tem que poder ser dito em meia dúzia de palavras e ser simples, à prova de burro.


Mas já estou outra vez a tergiversar. Ou melhor, a derivar. Não era nada disto. Parece que ando aos ziguezagues, sem bússula.
Agora até me está a fazer lembrar aquela prova de orientação nocturna numa terra qualquer no meio do nada. Eu e mais uns quatro simpáticos, à nora, perdidos, desorientados, sem vermos nada, sem conseguirmos interpretar o mapa que nos tinham dado, sem atinarmos com a bússula, tropeçando. E eu rindo, rindo, rindo. Às tantas, ouvimos mais abaixo, sem percebermos de onde vinha o som, barulho de gente que caía, que se zangava, zaragateando uns com os outros. Era outro grupo. Pelos vistos estavam a levar aquilo muito a sério. E os do nosso grupo unidos na desorientação e eu, a cada vez que percebíamos que tínhamos ido no sentido errado ou que um caía ou que soltava um palavrão, a rir até mais não poder. E eles cheios de paciência comigo e com a situação. Lá para as tantas conseguimos dar com o nosso destino e o destino era uma casa com um alpendre e, debaixo do alpendre, umas mesas de madeira. E uma senhora a servir-nos canja quente numa tigelinha de barro. Fomos para o hotel de madrugada, bem dispostos, com a sensação de prova superada.
Assim estou hoje, sem saber para onde vou nem como orientar-me. Deve ser da espécie de cansaço que tenho hoje em cima de mim.

Explico. No espaço de cinco dias já é o segundo aquário que festeja a sua existência. Cheguei a casa tarde e, porque a semana não tem dado tréguas, estou a modos que um bocado cansada. Por isso, estou em piloto automático. Os dedos estão para aqui a conversar e eu nem sei bem sobre o que é a conversa nem com quem é.

Só sei que, depois da cena no semáforo, este vídeo vem mesmo a calhar. É bonito. 

It's wonderful


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As fotografias são de Bettina Rheims e não têm a ver com o texto mas com o facto de eu gostar de mulheres -- ou não fosse eu uma. Neste caso, gosto de ver como Bettina Rheims fotografa as mulheres. No vídeo, Salma Hayek faz de Frida, mulher livre.

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E uma bela quinta-feira a si que está aí a aturar-me.

18 comentários:

Paulo B disse...

"De resto, o que posso dizer é que não me vejo cercada de pecados, não tenho medo, ouso e não complico. E, no que me é importante, não cedo, mas, no que é irrelevante, estou-me nas tintas." Gosto.
Vou só deixar aqui a Courtney. Acho que combina: https://youtu.be/ugUFu8XUjgA


Abraço

Um Jeito Manso disse...

Olá Paulo,

Não a conhecia. Tenho estado a ouvi-la. Gosto. Vai ficar na minha lista.

Gracias, Paulo!

Pã Daimon disse...

Senhora à mesa, no tálamo messalina [Capriccio 5: Agitato]

Nada como a bela donzela que mira com lástima as tristes safos sequazes do godemichet atamancado em príapo arnês prostético.

Anónimo disse...

É com comentários destes que se arruina a notoriedade da pornografia lésbica...

(Alguns dados aqui e uma análise sobre os dados aqui.)

Anónimo disse...

Duas gajas a beijarem-se dá-me uma tusa do caraças! Jesus!!

Paulo B disse...

Se bem me recordo da catequese, o Jesus não é gaja. Lá por o representarem de cabelos compridos... Não seja preconceituoso caro anónimo.

Paulo B disse...

Ainda assim, sugiro-lhe o Walerian Borowczyk:
https://youtu.be/qpCA9tSGMpc

Um Jeito Manso disse...

Olá Pã Daimon,

Para começar só o nome que desta vez escolheu é todo um programa. Extraordinário, mesmo. Como é bom de imaginar, não sendo eu versada em mitologia, fui conferir. E achei uma ideia muito interessante. Por exemplo, fiquei a saber que Συρινξ era uma discípula de Artemis, nome pelo qual uma pessoa, no passado, me designava.

Quanto ao comentário em si, escrito com recurso a sumptuoso vocabulário, terá mais a ver com as típicas fantasias masculinas do que com a visão que as belas donzelas, quiçá nem mesmo as messalinas, folguem em ter.

Mas, quer pela revelação dos seus pensamentos quer pelo requinte vocabular, é um comentário que tem graça e que acrescenta um spicy tempero a este blog.

Uma noite descansada, Daimon.

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo do PornHub,

Não será por acaso V. uma outra encarnação do δαίμων? Mas deixe lá, tanto faz.

E não conhecia essa informação que enviou mas, sem dúvida, é útil. Diria, até, que rivaliza com a Pordata. Não quer ir à Fundação Francisco Manuel dos Santos ver se não querem apoiar uma versão portuguesa do PornHub? Acho que seria serviço público e do bom; e quer-me cá a mim parecer que o Caríssimo teria competência para a dinamizar com grande estilo.

Entretanto, para me instruir, vou ver se arranjo tempo para ver aquela informação com alguma atenção pois muitas faces tem a raça humana e esta, afinal, é também uma delas.

Thanks.

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo que apelou a Jesus,

Mas não sei a que Jesus se referiu no contexto em que o fez. Seria por estar a confessar-se? Achou que Jesus, o próprio, estava a ouvi-lo?

Seja como for, ide em paz. Amén.

Um Jeito Manso disse...

Olá Paulo,

😃 😃 😃 (Essa foi boa) 😃 😃 😃

[No entanto, há teorias, umas da conspiração e outras de cão de caça, que afirmam que Jesus era, de facto, uma mulher. Creio que literariamente é teoria que até rende uns $$$.]

Um Jeito Manso disse...

Olá Paulo,

Só agora reparei que o vídeo do beijo francês foi mandado por si, senão tinha já respondido no comentário acima.

É que, a propósito disso, o vídeo que hoje divulguei está melhor fornecido nesse capítulo, diria eu.

E, no entanto, quando escrevi o post e lá coloquei o vídeo ainda não tinha visto estes divertidos comentários, foi pura coincidência. Mas tem graça.

Paulo B disse...

É de um filme do Walerian Borowczyk. Um rapazola oriundo da ultra conservadora Polónia que chocou um terço do mundo, intrigou outro e deixou os restantes fascinados.
Abraço,

Boa sexta-feira!

Um Jeito Manso disse...

Olá Paulo,

Gosto de filmes de época. Fiquei curiosa. Não conheço. As suas indicações são sempre interessantes.

Uma boa noite!

Paulo B disse...

Hahahahaha.
Ok. Bem desta vez, é uma indicação mais ousada que interessante.
O Walerian Borowczyk é um tipo marcado. Mas acho piada. E lembrei-me dele nesta sequência de posts.

Abraço! Boa noite.

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo Discipulo de Jesus,

Volto aqui não para o mandar rezar umas quantas ave-marias mas para corrigir o ámen que, acima, me saíu com o acento fora do sítio e não sei se com os acentos trocados faria o devido santificado efeito.🙄

Paulo B disse...

Queria eu dizer marado. Este Google acha sempre que sabe o que uma pessoa quer dizer...

Um Jeito Manso disse...

Olá Paulo,

Quando ontem li que o homem era um tipo marcado fiquei intrigada e até pensei: 'Coitado'. Hoje quando vi que era marado até me ri.

Os correctores automáticos são um perigo. No outro dia escrevi um mail no telemóvel e não revi. No outro dia, quando o li no computador até me ia dando uma coisa. Um palavrão mais feio e mais a despropósito que nem queira saber. Depois fiquei na dúvida se deveria pedir desculpa e explicar ou se mais valia ficar sossegada. E fiquei. Mas ando com esta atravessada....