quinta-feira, fevereiro 13, 2020

Eutanásia





Confesso: é tema sobre o qual não quero nem pensar, talvez porque gostava de nunca, em circunstância alguma, ter que tomar qualquer decisão que se relacione com isso.

Tendo que lidar de perto com a finitude da vida, e tendo já por várias vezes visto de perto um fim que, milagrosamente, a seguir, se adia, o que posso dizer é que não antevejo que alguma vez consiga ter coragem para pensar em ser eu a agente da decisão de pôr fim à vida de quem quer que seja. 

E não é por amar demasiado a vida para pensar em interrompê-la. Ou, se calhar, é por isso e mais porque tenho em mim este sentido de esperança que parece que me obriga a confiar no rumo natural das coisas.


Quanto a mim própria não sei. Tenho pavor a ser um fardo para alguém. Estar num estado em que alguém tenha que ser escravizado para me manter viva é coisa que me mataria por dentro. Contudo, tenho esperança de que, se um dia isso acontecer, eu tenha recursos financeiros para que o tratamento seja profissional e levado a cabo por quem seja pago para o fazer, podendo as pessoas revezarem-se. E tenho também esperança de que a vida ou o acaso sejam generosos comigo e me poupem a sofrimento prolongado. É que não sei se, sendo o sofrimento físico e psíquico insuportável, quereria continuar a viver. Mas sei que não quereria passar o ónus de dar a ordem ou de facilitar a operação para alguém que ficasse com esse peso para o resto da vida.
Sei bem o que sofri e ainda sofro quando penso no último olhar da minha cãzinha quando o meu marido a levou à clínica veterinária e ela, tão mal que estava, tão mal, minha querida, tão mal, sem qualquer esperança, e já mal se aguentando viva, ainda assim estranhou que eu ficasse no carro, eu que sempre a acompanhava e lhe fazia festinhas para que ela se acalmasse. Virou a cabeça para olhar para mim, um olhar intrigado e triste. Não esqueço esse seu olhar. Tomara que não tenha percebido. Mas fui cobarde, infamemente cobarde, não suportei assistir ao seu fim nem suportei a ideia de a levar até onde a sua vida iria ser encurtada. 

Outra coisa diferente, e ainda não há muito passámos por isso, é quando a pessoa está muito mal -- em estado terminal, sem qualquer possibilidade de sobreviver -- e os médicos explicam qual a situação e perguntam se se autoriza que se suspenda a medicação de sobrevivência, administrando apenas tratamento paliativo. É muito doloroso, é coisa que não se quer ouvir, mas há a consciência de que se está apenas a deixar a natureza seguir o seu rumo, mas fazendo-o sem sofrimento. Ainda no outro dia, um amigo me contou como passou exactamente por essa mesma situação. Horrível. Muito doloroso. Mas há a convicção de que, a não ser isso, seria continuar a infligir um prolongamento de vida artificial, dependente, contranatura, a alguém que muito se ama. E isso a legislação já o permite e os médicos já o fazem. E fazem com sensibilidade, com cuidado, com respeito pela dignidade de todos.

Portanto, por mim, prefiro não falar em eutanásia, prefiro que não ande meio mundo a falar nisto como se fosse um tema-bandeira, uma causa-fracturante, um lugar-comum, uma coisa-de-nada, uma banalidade para ser usada como arma de arremesso na praça pública.

Se forem para a frente com a merda de um referendo, abster-me-ei. Se for a votos na Assembleia, não quero nem saber.


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Pinturas de Mark Rothko do seu período dark que já prenunciava a escuridão que o estava a envolver

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3 comentários:

Paulo B disse...

Olá UJM,

n"antevejo que alguma vez consiga ter coragem para pensar em ser eu a agente da decisão de pôr fim à vida de quem quer que seja".
A decisão é e será única e exclusivamente do próprio, nunca de um outro alguém. O pedido será obviamente avaliado para verificar que cumpre estritamente os requisitos que permitam a alguém assumir uma decisão destas, para a qual poderá necessitar de ajuda na sua execução. Nesta medida estamos perante um agente executor apenas e nunca um agente decisor. E estes podem ser objetores de consciência. Tão só isso.

Sim, deveria o estado investir nos cuidados paliativos, deveria o estado investir mais recursos em investigação e desenvolvimento nestas áreas da saúde, etc etc. Mas não é de política de mais ou menos investimento público que se trata. É tão só de fornecer um enquadramento legal para situações limite que eventualmente levam a estas ações, que são hoje realizadas em contextos muito pouco claros, seguros e dignos.

Abraço!

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

UJM, em completa sintonia!

Um dia radioso para a riqueza!

P. disse...

Eis senão quando uma múmia se levanta do seu sarcófago para vir atanazar os ímpios que se atrevem a defender a morte assistida.
Aníbal, com aquele semblante carregado, ar grave e naquela inconfundível voz de "gaita travessa" (algarvia), vem alertar para a maldade do que os Deputados democraticamente eleitos se preparam para decidir, sem consultar o povo.
À múmia instalada no Convento de Sacramento em Alcântara, atrever-me-ia a sugerir-lhe a leitura dos Sermões do Meu PIPI (pode encomendá-los pela FNAC, fica a dica), uma vez ali regresse ao aconchego do seu sarcófago, que seguramente o ajudariam a ter outro estado de espírito.
Hoje, numa estação dos CTT, ouvi este diálogo entre duas senhoras com sessenta adiantados anos (presumi-lhes a idade precisamente pelo conversavam).
Uma: “Sabes, disseram-me que, uma vez aprovada a Eutanásia, o SNS enviará a todos os cidadãos que completarem os 70 anos de idade um «kit» para, se assim o desejarem, porem termo à vida, quando bem entenderem. Credo! Já viste! Será possível?”
A Outra: “Mas que disparate! E acreditas nisso? Custa-me a que assim seja! Mas, já não digo nada. Desta gente (nota: não sei se referia ao governo, se aos políticos em geral) tudo é de esperar! Mas, nah, não pode ser. Seria fazer pouco das pessoas!”
A primeira: “Pois, ao que me dizem, já consta nas redes sociais. Eu cá vou esperar para ver, pois para o ano completo 70. E tu segues-me um ano após. O que nos havia de acontecer nestas idades!”
Etc. Até que um tipo, com ar de beato, um «blend» de Cavaco Silva (embora mais atarracado) e Cardeal Cerejeira, entra na conversa: “Nada que me espantasse, minhas senhoras! (tinha uma voz aflautada e uma calva luzidia e bem polida). Mas, a Igreja está atenta e acabará por forçar um referendo. Deus nos salve de semelhante calamidade!”
Já não ouvi o resto, pois uma voz feminina agradável lá chamou por mim: “Nº 128- A!” E lá fui.
Saí dali levando comigo o sorriso da bonita funcionária, mas ainda deitei um olhar ao trio. O beato continuava, empenhadamente, a amedrontar as duas simpáticas quase septuagenárias.
Já na rua pensei: “alguém andou a cursar na Cambridge Analytica e foi mau aluno. Depois de ter chumbado nos exames, pensou que se safaria por cá, no Rectângulo. É o mais certo!”
Por mim, não me repugna a Eutanásia, ou melhor, a morte assistida e, sendo matéria especialmente sensível, deve ser a A.R e os dignos Deputados a decidir e não através de um referendo, onde, por exemplo, teríamos uma Igreja a intervir, demagogicamente, perturbando as mentes mais permeáveis. É que, esta questão estava nos programas eleitorais dos Partidos políticos que agora vem a terreiro propô-la. E foi aflorada na campanha eleitoral e num ou outro debate. E, a maioria dos eleitores votou no conjunto PS/BE/PAN/IL (já agora também PEV).
No meu caso, se por exemplo tivesse a infelicidade de ficar paraplégico do pescoço para baixo, preferia morrer, deixar de vez esta vida, a qual deixaria de ter prazer em desfrutar. Assim já o referi a minha mulher.
Por fim, este assunto não deve ser visto de um prisma político, ou pelo menos entre Direita e Esquerda. Por exemplo, o projecto da Iniciativa Liberal é bastante ponderado, a meu ver.