quarta-feira, novembro 27, 2019

Sandrine Bonnaire perdeu a inocência


Há trinta anos Sandrine já era reconhecida pelo seu talento. 

Lembro-me bem de a ver, rosto de menina, radiosa, cativante. 
A sua beleza inocente -- que poderia, sem esforço, deslizar para a malícia --- encantava quem a via. Era de uma ingénua joie de vivre combinada com uma ambiguidade que fazia prever a capacidade de pecar sem culpa, encarnando aquela duplicidade encantadora que prenunciam o incomparável prazer de seduzir. 
Nessa altura ela ainda não sabia o que haveria de lhe acontecer uns anos mais tarde.

Uma década depois, aquele que foi o seu companheiro e que nos primeiros anos sempre lhe pareceu atencioso, amoroso, uma simpatia, viria a revelar-se possuidor de um amor tóxico, perigoso. Como infelizmente acontece neste tipo de relações, há um dia em que a coisa descamba. E descambou. Veio a violência doméstica. Com os ossos do rosto partidos, oito dentes destruídos, a língua rasgada, toda ela desfigurada, Sandrine desceu ao inferno.

Felizmente, os amigos apoiaram-na e não apenas o criminoso esteve preso como ela se submeteu a cirurgias, ganhando coragem para se reconstituir como mulher e como atriz. Lamenta, claro, que a condenação não fosse senão de dois anos e de uma indemnização para pagar os custos das cirurgias e da terapia. Mas, enfim, pelo menos foi condenado.

No dia 23 de Novembro, em que se gritou o não à violência doméstica e aos assassinatos (em França, os números de mulheres assassinadas também são assustadores), Sandrine desceu à rua e, ao lado das outras mulheres e homens, gritou contra a violência.

É agora uma mulher com cinquenta e dois anos e um rosto que mostra que a vida não lhe foi fácil. Mas está inteira, a trabalhar, a testemunhar a dor e a coragem, a servir de exemplo para que outras, em situações idênticas, não deixem chegar as coisas ao ponto a que com ela chegarem. Sobreviveu e está cá para contar mas poderia ter sido mais uma das muitas mulheres que se entregam e que, acreditando numa ilusão que só existe na sua cabeça, acabam por se ir anulando até que um dia a sua vida pode ser definitivamente aniquilada,

Assim era Sandrine Bonnaire em 1989.


E assim é Sandrine agora, recordando o que lhe aconteceu, numa gravação que dura escassos segundos (e que não sei como pôr em ponto maior). Obtive o vídeo no artigo "J’ai eu tous les os du visage cassés" : Sandrine Bonnaire détaille l'agression de son ex, na Madame le Figaro.



Não fui a nenhuma manifestação mas, uma vez mais, aqui estou a, na fraca medida das minhas possibilidades, pedir às mulheres que me lêem e que não são inteiramente felizes no seu relacionamento e que suspeitam, mesmo que seja uma suspeição que não querem ouvir, que não é um amor totalmente retribuído e de que há alguma tendência para uma agressividade num nível difícil de explicar, ou que, numa fase posterior, já são vítimas de violência psicológica ou física, que não aceitem perder anos de vida a troco de coisa nenhuma. Afastem-se ou, se já for caso disso, denunciem o agressor. Nunca é cedo demais. Pode é ser tarde demais.

Vejam o vídeo até ao fim, por favor. Não é importante apenas para quem vive ou suspeita que pode vir a viver uma situação assim mas também para os outros, para que todos aprendamos a conhecer os sinais e possamos ajudar quem precisa de ajuda mesmo que não saiba que precisa ou não queira assumi-lo.

A história de amor de Jessica


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A bem da felicidade e da paz de espírito.

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