quarta-feira, novembro 13, 2019

O mistério das duas meias desaparecidas. O Siza acima das investidas da Fátima Campos Ferreira. E meia dúzia de truques utilíssimos na cozinha




Não sou dada a metafísicas. Enquanto há pessoas que se inquietam com desaguisados com amigos ou colegas, que se amofinam grandemente com chefes ou vizinhas ou que andam numa ansiedade a querer saber se vai haver mudanças no trabalho, a mim tudo isso me passa um bocado ao lado. Ou, se não, então, tem efeito imediato, intenso e efémero. Depois de expor as minhas razões e dizer de minha justiça, está feito, está dito. E adiante.

Em contrapartida há coisas que verdadeiramente me tiram de sério.

Uma das piores, incontornáveis, é ter que respirar o mesmo ar que gente parva. Não aguento. Fico doente. Gente parva ou narcisista, que é variante pior e mais perigosa. Não dá. O que vale é que faço de tudo para que não aconteça isso de ter que respirar o mesmo ar pois, se calha acontecer, pode ter consequências imprevisíveis. Muito mau. Fico doente só por ter que me conter. É que o tempo todo estou à beira de atirar coisas à cabeça da pessoa, dar-lhe pontapés, despejar-lhe água para cima, empurrá-lo para muito longe.

Mas pronto, não é disso que vou falar. É de outro tipo de coisa que também me perturba e, felizmente, bem mais comezinha. 

Conto, até porque não tenho por que guardar segredo.

Hoje foi dia cheio de coisas e tudo coisas com peso. E trânsito a polvilhar todas as responsabilidades e atribulações. Além disso, a minha filha tinha uma reunião que acabava mais tarde e não conseguia chegar a horas de os levar ao treino. E o pai das crianças também não. Fui eu. Saí mais cedo e pus-me a caminho. Percurso de quinze minutos, dizia o gps e confirmava o google. Mas não vou em cantigas. Pus meia hora em cima. Anoitecia. Depois ficou mesmo noite. E chovia. Pior: o trânsito. Um inferno. Um stress. Eu a ver passar o tempo e tudo meio parado. Cheguei a horas, à tangente. Quarenta e cinco minutos para fazer um percursozeco. Levava-lhes lanche e avantajei-me. Ao ver o saco com os mantimentos pensei que era comida a mais. Qual quê. Comem que nem uns lobos. Uma alegria de ver. Depois, da escola à escola de futebol o gps marcava cinco minutos. Está bem, está. Vinte minutos. Pára-arranca-pára-arranca. Felizmente cheguei a horas mas, bolas, sempre um stress.

Estão tão grandes, jogam tão bem futebol, uns valentes, e são tão queridos, tão lindos, estão tão crescidos. Ainda fiquei lá a vê-los até às sete e meia. Não tenho paciência para ver futebol mas gosto de vê-los a eles.

Pensei que, para casa, vinda dali, já não apanharia trânsito àquela hora. Pois, pois. Cheguei a casa já bem depois das oito. E ainda fui caminhar. E, ao andar, pensei: tão stressada que estava há bocado e agora já nem vestígios. Tranquila, descansada da vida. E das contrariedades e diatribes do dia igualmente nem pó. Mesmo sabendo que, nesta altura, os prazos, os afazeres e as exigências se prestam a pouco descanso físico e mental, mal saio do trabalho já tudo vai para trás das costas.

Provavelmente isto quer dizer que sou fútil mas, se for, olha, abençoada futilidade. Mas acho que nem chega a ser isso: na volta, é mesmo só a minha natureza que é natureza de bicho. Mas isso não interessa para nada nem é para aqui chamado.

É que isto tudo é para dizer que, depois, em casa, aconteceu uma daquelas que me tira do sério. Verdadeiramente do sério.

Conto.

Gosto de andar descalça em casa. Mas agora já está frio para andar de pé ao léu. Então, ontem à noite, calcei umas meias quentinhas, em mesclado cor de rosa e branco, daquelas que têm umas bolinhas anti-aderentes na sola. O conforto que me dão só eu sei.

Hoje, quando cheguei a casa, descalcei-me, despi-me, desmaquilhei-me, lavei-me, apanhei o cabelo, vesti uma roupa confortável. E as meias que tinha usado ontem, durante o bocadinho que aqui estive sentada a escrever. Mas só lá estava uma meia. Uma. Pois saibam que procurei, revirei tudo, espreitei para todo o lado à procura da outra. Nada. Nem vestígio. Furiosa com estas coisas que me acontecem, calcei apenas essa e fui à gaveta das meias e desirmanei um par para calçar uma meia no outro pé, uma preta com pintinhas brancas.

Pois bem. Com as duas meias, uma de cada nação, estava aqui sentada a ver as notícias.

Depois levantei-me para ir provar umas calças para amanhã. E nessa operação de despir umas calças e vestir outras, dei por falta da meia preta. A outra continuava calçada. Passei-me. Raios partam a meia. Sacudi as calças, espreitei tudo, revirei tudo. Nada. A meia preta das pintinhas também desapareceu. Sumiço completo.

Como é isto possível?

E isto maça-me, caraças. Que fúria isto me dá. Agora fui ali buscar uma mantinha leve de veludinho fino em azul turquesa e fiz uma espécie de embrulho em volta do pé descalço. Sempre quero ver se a manta também desaparece. 

Só não me desoriento a sério com isto porque sei que elas hão-de aparecer; mas isto chateia-me. Não encontro explicação. 

E enquanto estive a contar esta situação estive a ver a entrevista da Fátima Campos Ferreira ao Siza. O meu marido já teve reuniões com ele, creio que todas no Porto. E vinha sempre impressionado com o que ele fumava. E continua. É impressionante: fuma, fuma, fuma. Gostei da entrevista. Sem fazer concessões ao óbvio e sem querer fazer o jeito à entrevistadora. Agora de uma coisa não gostei. Melhor, custou-me a suportar. Há, em alguns entrevistadores, esta mania de quando se entrevista uma pessoa de idade acabar a entrevista a perguntar-lhe quando é que morre. Ou, se não é bem assim, à descarada, é se tem medo de morrer. Ou como é que gostava de morrer. Parvoíces que metem raiva. E esta de a Fátima estar a impingir a morte ao Siza deixou-me quase tão furiosa como esta de me terem desaparecido duas meias sem eu perceber como.

Tirando isso, o que tenho a dizer é que descobri uns truques bem úteis para usar na cozinha. Pode parecer coisa de nada, sem dimensão filosófica, sem densidade metafísica. Nem dá para dourar a pílula, apresentando a coisa sob fino recorte pseudo-literário. É mesmo coisa lisa, plain, simplória, coisa de zinha que é o que eu sou, ainda por cima com um pé com meia e outro sem.

Mas tal como nós somos quase todos feitos de água e só uma pequena percentagem é que é substância valiosa, também nisto da vida é a mesma coisa: quase tudo treta.

Portanto, com vossa licença.

Como tirar o pé ao morango, como tirar o sumo ao limão sem o cortar, como ressuscitar um pão seco, como descascar bem o ovo. Tudo informação preciosa. Nem vejo a hora de experimentar. Quando vir o sumo do limão a jorrar de um furinho vou pensar que é poesia pura. E se non è vero, è ben trovato.


E pimbas.

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Se eu não fosse eu e fosse capaz de fazer igual àquilo de que gosto, eu faria um blog limpo, claro, sem enfeites, sem bonecada, sem banda sonora. Há alguns na galeria dos frescos & bons, aí ao lado, de que gosto muito, quer na forma quer no conteúdo: são como eu gostava de saber fazer. Branquinhos, prosa destilada, requinte puro.

Mas, sei lá porquê, tem-se revelado que sou incapaz de me vergar para fazer parecido.

Volta e meia apetece-me mudar. Mudar de penteado, de estilo de roupa, de decoração. E, claro, de imagem do blog. Mas, tal como quando pinto, mal dou por mim já está tudo às cores. Como sempre. E agora pus-me a escrever e pensei: isto hoje vai na base da austeridade, coisa despojada, nem fantasias, nem trololós. O texto já está pintarolas que baste, não precisa de confetis pelo meio. E aguentei-me. Até agora.

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E pronto, já reincidi. Como se pusesse bibelots, fui por aí abaixo dispondo imagens de trabalhos de Thia Path, E, lá em cima, apeteceu-me ouvir Imelda May embora esteja para aqui a pensar que tenho mixed feelings em relação a elas. Mas, enfim, no meio disto tudo, espero que se tenham sentido bem acompanhados, senão por mim, pelo menos pela Imelda. Ou, ao contrário, se não pela Imelda ou pela Thia, ao menos por mim. Presunção e castanhas querem-se com água benta. (Ou será água-pé?)

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E um dia feliz para si.

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