quarta-feira, outubro 02, 2019

Em dia de segredos, mel e ruibarbo, vou seguir os bons conselhos do Onirocrata





Para quem tem uma vida muito diferente, estas coisas que escrevo aqui sobre os meus dias podem parecer género. Mas não são. É a minha vida com o que ela tem de bom e de mau. E tem fases. Alturas de sobressalto, alturas de stress, alturas de sobrecarga, alturas de inquietação, alturas de desafio, alturas, até, de normalidade. 

Agora, já o disse, é uma daquelas alturas em que tudo se atropela: sobressalto, sobrecarga, stress. tudo.

E, no meio de conspirações, impaciências, fúrias e, etc, por vezes, quando menos se espera, acontecem coisas surpreendentes. Coisas que parecem levar-me para outro tempo, outro lugar. Depois de trabalhar mil anos, eis que me acontece uma coisa pela primeira vez. Ao fim da tarde, pensando eu que já estava mais sossegada, pus-me a redigir um documento sigiloso, perigoso. Aparece-me, então, um jovem à porta do gabinete. Estagiou, gostei dele, aprendeu, dedicou-se, interessou-se. Humilde, com vontade de aprender. Tudo novo para ele. Gostei da atitude. Pu-lo a ter responsabilidade a ver como corria. Correu bem. Convidei-o para ficar. Aceitou. Hoje, ali à porta, queria saber se podia entrar. Claro que sim. 
Pelo sim, pelo não, minimizei o documento, não podia ser visto. 
Entrou. Trazia um saco de plástico na mão envergonhada. E eu admirada. Meio tímido. Trago um presente da minha mãe, disse. Da sua mãe? Meio a medo, contou que a mãe queria agradecer. Agradecer? O quê? E ele, Por eu ter ficado. Estupefacta. Mas não tem nada que agradecer, ela tem é que agradecer a si por nos ter convencido que o deveríamos contratar. E ele, um sorriso ingénuo, envergonhado, Pois, eu disse que não devia ser costume oferecer coisas mas ela quis. Até vim tarde para ninguém ver. Podiam falar, não sei. É mel lá da terra dela. Espreitei para dentro do saquinho, um saquinho que antes tinha sido de outra coisa. Um boião de mel. Senti-me comovida. Quanta gentileza. Disse: Diga à sua mãe que não devia, não era preciso. Mas que gosto muito de mel, que fiquei sensibilizada. E fiquei mesmo. Disse ainda: Diga à sua mãe que lhe mando eu beijinho. Ele mordeu o lábio, pareceu-me comovido. Tão novinho. Penso que percebeu que gostei tanto. E tão contente que estou com o presente que ganhei. Nunca antes tinha recebido presente por ter contratado alguém. Presente de uma mãe. Quanto amor o daquela mãe. Pensei que gostava de conhecê-la, dizer-lhe que tem ali um menino de ouro. Vive longe mas sei que já vieram a Lisboa, pelo menos uma vez, para almoçar com o filho. Se soubesse como fiquei sensibilizada. Em vez de ficar apenas contente pelo filho, lembrou-se de se sentir agradecida, de me agradecer. Nunca me tinha acontecido. Nunca me esquecerei disto. Nem sei se conseguirei comer o mel, se calhar deve ficar para sempre a reluzir para nunca me esquecer da importância dos pequenos gestos. Dos grandes gestos.

A manhã teve reunião cheia de asperezas, cheia de impasses, de coisas. E a tarde ia ser bicuda. Saí cheia de fome, até parece que estava mal disposta. No entanto, o almoço teve que ser rápido. Mas, em dias assim, eu tenho que veranear nem que seja de fugida, meros minutos. Se não deixo entrar ar livre na cabeça vou para a parte da tarde a sentir-me asfixiada.

E então vi a perfumaria. Uma loucura. Não preciso de perfumes. Mas gosto de descobrir cheiros novos. Sou dos sentidos. E o cheiro é dos que me prende. Fui ao escaparate das promoções. Todos caros. Não quis. Repeti dentro da minha cabeça: não preciso. Cheirei, borrifei-me. Gosto tanto. E, então, um que desconhecia. Um preço nada a ver com o dos outros. Era de quarenta, estava a dezasseis. Cheirei. Agradável. Aquele cheiro estranho, insólito, bom. Reconheci. Há uns dois anos, vi um frasco encarnado, lindo. Cheirei. Um perfume insólito. Mas tão caro. Sem precisar, tão estranho, tão caro. Não comprei. O meu lado racional, por vezes, impõe-se. A partir daí, quando há saldos, tento descobri-lo a metade do preço. Nunca. Não vai a saldos. Estou a falar do perfume de ruibarbo da Hermès. Hoje, na perfumaria, tentei ler as letrinhas minúsculas da embalagem desconhecida. Não consegui. Não trazia a lupa. Perguntei à menina. Não sabia, disse que achava que era morango. De facto, pareceu-me haver um morango no desenho mas o cheiro nada tinha a ver com morango. Eaux Rayonnantes do Docteur Renaud. Quando cheguei a casa, peguei na lupa e fui ler: mandarine verte, mûre et rhubarbe. E aqui, ao ler isto, fiquei toda contente. Lá está: o aroma do ruibarbo. Tão contente que fiquei.

Mas, antes, também já tinha ficado agradada com os comentários do Onirocrata. Ele muda de nome e eu reconheço-o sempre. Surpreendo-me com os nomes que arranja. Acho-lhe graça. Agora é o onirocrata e, cá por mim, se continuar inspirado, pode continuar a aparecer-me com conselhos úteis, com sonhos nas palavras, presentes a saber a mel e nomes sempre muito novos.

Transcrevo:

6 - Ataraxia é imanente, mas encontra-se oculta por denso artifício.

7 - Dia e noite, morte e vida, vigília e sono, ordem e caos: a aceitação desinteressada dos ciclos universais traz consigo nenhum erro.

8 - Muito embora as inúmeras palavras e os labores empreendidos, o telos da humanidade não pode ser outro senão o que é, e nenhum ser humano tornar-se naquilo que não é.

9 - Dançar - apaziguar a mente, deixando o corpo submeter-se ao som - só ou acompanhada.

Lather, rinse, repeat until slumber reach.


Música nas palavras. Tão bom. Vou seguir estes conselhos e adormecer entre danças, sonhos, rios de mel, perfumes insólitos, silêncios insolentes. E esperar que venham mais -- para melhor dormir ou, apenas, para melhor sonhar.

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As fotografias são de Patrick Demarchelier

[E um dia feliz também para vocês]

3 comentários:

Anónimo disse...

Mas que história tão querida a do mel da mãe. Comoveu-me. Ainda acham as pessoas que fazemos mal em ser agradecidos.

Eu às vezes acho que sou já toda uma pessoa a sério, mais que capaz quer de fazer frente aos que me aborrecem, quer de fazer bem aos outros, mas depois deparo-me com a minha capacidade limitada - num e noutro campo. Por exemplo. Já dei aulas a alguns alunos que foram meus colegas de curso. No ano passado, na última aula, ao comunicar as notas, tive de comunicar a de um desses alunos/colegas. Meu colega de primeiro ano, sempre sentado nas cadeiras de trás, sem nunca ter aberto a boca em aula. Devo ter trocado só duas ou três palavras com ele. Tenho quase a certeza que ele achava que eu não fazia ideia de que tínhamos sido colegas. Na última aula do semestre, em que se comunica as notas finais, disse a dele - chumbava. Acrescentei que me custava em particular dar aquela nota, por razões que ele talvez pudesse intuir, pois ninguém gosta de ver os outros ficar para trás. Disse que lendo o teste dele se percebia perfeitamente que ele tinha as ideias alinhadas e que apenas a falta de estudo e interesse pelas matérias podia explicar que não fosse capaz de mostrar mais conhecimentos e que, por isso, lamentava não ter sido capaz de incutir esse interesse. Ele ficou discreta mas visivelmente sensibilizado. No final da aula veio ter comigo. Dava para ver que não sabia o que me havia de dizer: viu uma abertura, uma aproximação da minha parte e queria aproveitá-la sem saber como. Acabou perguntando-me se eu daria uma aula de dúvidas para o exame. Acho insuportáveis as aulas de dúvidas desde que era estudante - em vez de dúvidas sobre aquilo que se leu, perde-se imenso tempo com dúvidas por causa daquilo que se não leu. Mas senti-me tentada a responder-lhe que sim. Depois, pensando no trabalho no escritório e nas aulas condução e na elaboração do exame que me cabia infelizmente a mim, respondi que não - envergonhada da cabeça aos pés com o meu egoísmo e a sentir-me uma hipócrita de discurso vazio. Arrependo-me muito.

Já não sei bem a que propósito veio este episódio: por algum motivo, a história do ex-estagiário e do mel da mãe fez-me lembrar dele. Uma questão de gestos, provavelmente - ou da falta deles. Enfim, muita sorte ao seu ex-estagiário, UJM!

Um abraço,
JV

Um Jeito Manso disse...

Olá JV

Percebo bem a analogia e percebo o dilema, a decisão e o sentimento que ficou.

Não devemos abdicar de nós, do nosso tempo, para facilitar a vida aos outros senão ficamos a frustrados por não podermos viver a nossa vida, só a dos outros. Mas eu acredito que conseguimos conciliar aquilo que, para nós, é importante. E é importante dar um pouco de nós a quem sentimos que disso precisa.

Acontece-me isto: estar a rebentar pelas costuras, sem tempo para o indispensável, e ver-me confrontada com situações em que pessoas que não fazem ideia do transtorno que me estão a causar, começarem a contar-me, ao pormenor, coisas da vida delas. E eu, apesar de, por vezes, estar uma pilha de nervos por dentro, disfarço e forço-me a dar o meu tempo, a ouvi-las com atenção. E sinto que não dei nada de mais.

Temos é que aprender a conciliar, a fazer as coisas mais rapidamente para nos sobrar tempo para acomodarmos estes inesperados.

São opções que vamos fazendo na vida, pequenas coisas. E poderá tentar compensar sorrindo-lhe da próxima que o vir, chamando-o de lado e dizendo-lhe que estude, que se interesse mais, que podem ir beber um café rápido para lhe dar umas dicas, explicando-lhe a sua falta de tempo.

De resto: vamos ter mais uma perigosa condutora nas ruas de Lisboa? Olhe: e ajeita-se a arrumar com o carro paralelo ao passeio? é que eu, depois de conduzir há mil anos, ainda não atino.

Abraço, JV Braveheart.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Belas partilhas para refletir, ricas JV e UJM.

Por falar em conduções e códigos, vou revelar um episódio pitoresco, eu com 8 anos fui ao programa "Malta Gira", com o Nicolau Breyner, para me perguntarem os sinais de trânsito, visto que nessa altura, associado à pancada por carros, me pus a decorar os sinais num livro do código que me tinham dado. Foi um instrutor duma escola onde uma prima minha tirou a carta fazer-me as perguntas.

Um abraço.

PS: O Chico de Sousa Rodrigues do outro comentário sou eu, claro!