Eu era uma flor, uma violeta. A saia era de veludo verde e tinha umas folhas em forma de pétala. O corpo era de veludo lilás e tinha umas manguinhas. Tinha uma fita no cabelo. Nos pés, sapatinhos de ballet.
Eu era a rainha das abelhas e tinha um vestido com saias e sobressaias em diferentes tons de amarelo e o corpete tinha umas fitinhas em cor de mel escuro.
Foi a primeira vez, com quatro anos, e foi a última, tinha dez.
Pelo meio, todos os anos havia a festa e, ao longo do ano, as aulas. Gostava muito. Gostava sobretudo da forma como conseguia elevar as pernas ou de como me equilibrava num pé com o corpo curvado ou também elevado, os braços a esboçarem movimentos que se esbatiam na ponta dos dedos. Gostava muito. Tanto. Andava pela casa dançando, elevando as pernas, sentindo-me graciosa, elegante e muito leve.
Mas aquilo de que talvez gostasse mais era da preparação para a festa, a prova dos fatos. Das grandes caixas que estavam nos camarins nasciam vestidinhos com folhos, tules, brilhos, cores e a expectativa do que dali ia sair era, para mim, o melhor de tudo. Depois as provas, a costureira a ajustar os fatos aos corpinhos, alguém que nos apanhava o cabelo, que nos alindava. A professora acompanhava ao piano. De vez em quando levantava-se para ajeitar um movimento de braços, um pé pouco elegante em algumas das meninas. Curiosamente não me lembro de haver meninos mas, se calhar, havia. Lembro-me de, eu abelha rainha, dançar com um zangão -- mas não me lembro quem é que estava dentro do fato, certamente um fatinho também muito lindo. Devia ser um menino. Mas a verdade é que não guardo qualquer ideia de meninos a dançarem. Na verdade, verdade, só me lembro de mim, da sensação boa de dançar, da leveza, da plasticidade que me surpreendia.
Toda a gente dizia que a professora era má. Nunca consegui perceber que o fosse. Era seca, distante, exigente, pouco carinhosa. Não me lembro de um gesto de cuidado ou ternura. Mas má não creio que fosse. Era solteira, nada alegre, muito austera. Tinha duas sobrinhas adolescentes, muito bonitas e muito modernas que, em tudo, contrastavam com a tia. Aliás contrastavam com a normalidade daquele tempo. Quando ela levava as sobrinhas à escola era como se duas pessoas de outro planeta aterrassem ali para nos surpreender. Agora que escrevo, tenho ideia que elas também dançavam. E era como se não fossem da mesma família. As sobrinhas podiam ser deste nosso tempo presente, ela parecia saída de um filme antigo.
Não sei porque é que, quando aquilo acabou, porque mudei de escola, nunca me ocorreu continuar no ballet. A verdade é que nunca. Há coisas estranhas na minha vida. A forma como me desligo de algumas coisas, esquecendo-as em absoluto, como se deixassem de estar no meu radar, até a mim, a posteriori, me surpreende. Penso que será por estar sempre tão disponível para conhecer coisas novas que, involuntariamente, a disponibilidade para as coisas do passado se encurta. Mas, se me esqueci de fazer ballet, a verdade é que continuei, ao longo de toda a minha vida, a adorar ver dançar. Tal como aconteceu em relação à pintura, com o tempo fui-me desinteressando dos bailados ditos clássicos, dos fatos muito convencionais, das coreografias muito déjà-vu. Não sendo apreciadora do experimentalismo absoluto, gente rebolando-se pelo chão, sem história nem propósito, gosto de ver o movimento grácil dos corpos, gosto de ver a harmonia de corpos em plena convergência.
E tudo isto hoje porque gosto de ver os talentos que despontam. Gabriel Figueiredo é um adolescente que parece ter nascido com asas. O que ele faz com as pernas é impressionante. Uma plasticidade que nos deixa perceber que os seres humanos são todos iguais mas que alguns são mais iguais que outros, e abençoados os que são diferentes. Ganhou o Prix de Lausanne 2019 em dança contemporânea e vê-lo dançar é um prazer.
E um belo sábado para todos!
2 comentários:
Uma maravilha! Tem uma agilidade extraordinária e um equilíbrio...
Sempre gostei de ballet, mas aqui não havia como ter aulas. Quando ficava horas a ver bailados no 2º canal, ninguém entendia este meu gosto, mas eu gostava de ver. Só há cerca de 15 anos vi o primeiro bailado ao vivo, no Coliseu dos Recreios. Depois disso, já vi vários aqui em Castelo Branco.
Beijinhos e um bom fim-de-semana:))
Olá Isabel,
Também eu sempre gostei imenso de ver ballet. E aqueles bailados no gelo também. Alguns bailados na patinagem artística prendiam-me à televisão.
Aquele miúdo (18 anos) tem uma amplitude de movimento de pernas que é espantosa. Os bailarinos sofrem, têm terríveis dores nos pés, mas, quando estão no palco, parece que voam, que flutuam, que o corpo não lhes pesa, não é?
Um bom domingo, Isabel. Beijinhos.
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