quarta-feira, fevereiro 27, 2019

Sobre o que vamos fazendo





Uma vez fiz uma almofada com fios saídos em argolinhas. A estopa estava esticada num bastidor. O desenho era inventado e as cores eram vermelho e laranja. E fiz toalhas de chá que penso que nunca usei. Crochet. E panos de tabuleiro. E uma toalha de renda grande. Usei-a uma ou duas vezes. É muito difícil de passar a ferro. E colchinhas de lã para as camas dos meus filhos. E tricot. Camisolas, casacos. E bordados. Muitos bordados. Algumas gavetas cheias desse meu dedicado labor, dessas inutilidades.

Houve uma altura, há mil anos, em que apanhava alguns transportes públicos para ir trabalhar. Trabalhava longe. Levava lãs e fazia crochet. Iam muitos colegas, todos homens. Ao princípio gozavam. Depois habituaram-se. 

Foi o meu percurso até chegar aos tapetes de arraiolos. Já não sei quantos fiz, tapetes e carpetes. Comecei por um simples. Logo a seguir quis fazer complicados. Outros à mão livre. O prazer de, do nada, de peças soltas -- um tecido, umas lãs -- fazer nascer uma peça intemporal.

Tenho isto: há coisas que não sabemos fazer mas que aprendemos e deixam de ser complicadas. Há outras coisas que não sabemos mesmo e que nunca conseguiremos.

Exemplifico. Quis ter os meus filhos a sangue frio e tive-os. Já aqui o contei várias vezes: foram partos muito complicados, induzidos, com fórceps. A sangue frio. Sem medo das dores. Sem pensar duas vezes. 
No trabalho também assim. É para fazer, faz-se. Não me ocorre pensar que nunca o fiz antes, que posso não ser capaz, que pode correr mal. Faz-se. O caminho faz-se caminhando.
Mas quando a minha filha tinha um dente a cair, preso por um fio ensanguentado, não consegui puxá-lo. Fomos para a casa de banho, assim não podia ficar, um dente suspenso por um fio. Tentei. Tentei mesmo. Enchi-me de coragem. Mas não consegui. A perspectiva de poder magoá-la tolheu-me os movimentos. Não consegui. Senti-me a desmaiar. Tive que me sentar, a ver tudo branco. Medo que lhe doesse. Ela, pequenina, pôs-se ao espelho, puxou o dente, arrancou-o. Ainda hoje fala disso. 
No outro dia, um menino disse-me que tinha um dente a abanar muito, quase a cair. Dias depois disse que já tinha caído, que a mãe tinha puxado. Relembrei. Pensei que, se tivesse que ser eu, voltaria a não consegui-lo. 

E a fotografia. Não tenho paciência para ler manuais, para ler livros técnicos ou para ir a aulas. Qualquer desses rituais me tiraria o gosto da descoberta. Faço fotografias a eito, milhares de fotografias. Mas não posso falar disso ao pé de quem saiba pois tendem a fazer-me perguntas sobre técnicas, se faço assim ou assado, se a objectiva é esta ou aquela. Não sei. Não quero saber.

Também não as organizo. Não sei se alguém, algum dia, vai fazer alguma coisa com tudo isto que, ao longo da vida, tenho vindo a fazer.

Uma pessoa contou-me que está a dar rumo às coisas dos pais. Uma casa muito grande, cheia de coisas. Diz que nunca mais acaba. Não sabe o que fazer. Há coisas de que não quer desfazer-se mas não tem onde guardar tudo o que acha que deveria preservar. Fala com lágrimas nos olhos.

Ao ouvir, pensei na minha casa. O meu marido diz muito isso: não vamos criar um problema aos miúdos. Geralmente é o argumento que vem para cima da mesa quando me quer convencer a deitar fora metade das coisas. Mas tem razão. Pode ser um grande problema. Tantos tapetes já sem saber onde pô-los, tantos quadros que já não tinha onde guardar (que paredes para os pôr já não havia), tantas fotografias que por aí estão em discos e nem sei onde mais.

Por isso, aqui, escrevo para o vento. Palavras soltas ao vento, para quem as quiser ler. Cartas que escrevo para quem gosta de me ler. Uma vez escrevi um livro. Não sei dele. Acho que estava numa disquette. Outra vez comecei a escrever outro. Achei por bem pôr uma password. Esqueci-me dela. Não faço ideia em que computador estará. Perdeu-se.


E talvez isto que acabaram de ler não faça muito sentido mas é que era para falar de uma coisa que me contaram e, afinal, achei melhor guardar o assunto só para mim. Pelo menos, para já.

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As pinturas são de Vermeer, ao som de Yann Tiersen com Porz Goret

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Caso sejam apreciadores de Trompe l’oeil: a arte da ilusão queiram descer até ao post seguinte.

5 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Quando se mete na cabeça que causamos dor, não há maneira de se fazer a coisa, já me aconteceu também.

As fotos são um verdadeiro Serviço Público à memória, por isso é bom ter na família uma UJM.
Tente assegurar é que os discos não se estraguem, também tenho uma série de discos, mas arrumei tudo para uma nuvem, estão lá as digitais e as de papel digitalizadas (claro está que não devem ser tantas como as da UJM). Falta-me é digitalizar a coleção de uma tia minha, essa sim a fotografa oficial da família no tempo do analógico e que tem um manancial de álbuns.

Um abraço.

Isabel disse...

Os meus sobrinhos também vão ter um bocado de trabalho quando eu partir. Sou uma acumuladora. Há coisas que eles dizem que querem, mas a maior parte das coisas têm como destino o lixo ou alguma feira de velharias! Pois que se há-de fazer? As casas não têm espaço para tanta tralha.

Ando há anos para organizar as fotos e ainda não o fiz. Um dia...

As pinturas escolhidas são muito bonitas:))

Beijinhos:))

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Sabe o que às vezes penso: as nuvens deste mundo devem estar pejadas de palavras e de imagens. Um destes dias, quando chover, em vez de água cai-nos em cima tudo o que lá andamos a armazenar. Não acha?

Não teria graça? O céu toldado de fotografias e palavras...

Uma boa quinta-feira, Francisco.

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Também eu sou uma acumuladora... Por isso, anseio por ter tempo livre para me desfazer de roupas e sapatos e tralhas inúteis e para fazer uma arrumação de roupeiros e cómodas e arcas. Mas é um problema, lá isso é.

Por acaso, quando os meus pais desmancharam a casa dos meus avós ou quando desmanchámos a casa de uns tios do meu marido tínhamos ainda muito espaço livre na nossa casa de campo. Se não fosse isso, por muito que quisesse não teria como ficar com nada. Os meus primos são muito mais desligados que eu mas, mesmo que não fossem, não tinham como ficar com móveis pois tinham as casas mobiladas, sem espaço para móveis antigos.

Mas olhe, Isabel, melhor nem pensarmos nisso. Desfrutemos a vida com o que nos dá prazer.

E as fotografias... um dia haveremos de ter tempo para isso. Senão, olhe, paciência.

beijinho, Isabel!

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

É verdade, teria mesmo!

Obrigado e boa 5f, também.