segunda-feira, junho 04, 2018

'O que é que tem feito?', perguntou-me ele.
E eu fiquei sem saber bem o que lhe dizer





Vai começar uma semana e começa logo bem, com uma reunião de manhã inteira. Uma vez, numa caixa de um supermercado em Setúbal, ouvi a empregada a contar como alguém tinha tentado roubar uma coisa e, com aquele sotaque carregado de erres tão típico de alguns setubalenses, acrescentou, 'foi mesmo à carrra podrrrre', como quem diz, 'à descarada'. Adorei a expressão. E agora, ao dizer que me convocaram para uma reunião numa segunda-feira, queimando-me logo a manhã inteira, só me apetece dizer que o fizeram à cara podre.

Fui ver a agenda. Toda a semana, sobrecarregada de uma ponta a outra. Uma agonia. Surgem convocatórias, compromissos, projectos e maçadas de todo o lado. É isto a economia a bombar. Tem um lado bom. Claro que sim. Mil lados bons. Mas, para quem está dentro do remoinho, é um cansaço, uma falta de ar.


Este domingo, à hora de almoço, já passava das duas e meia, tocou-me o telemóvel. Fiquei sem ânimo. Nem queria acreditar que, mal ia começar a almoçar, estava o telemóvel a tocar.

Amanhecera com vontade de me atirar à faxina de interiores. Não toquei no estúdio, que é independente, nem na ala da casa onde estão os quartos dos meus filhos e a saleta de estar deles já que, sendo zonas pouco usadas (a não ser no verão), pouco se sujam. Mas as casas de banho, a cozinha, a sala grande, a sala de televisão e os corredores estavam a precisar de barrela. Uma casa térrea, no campo, onde as portas e as janelas estão sempre abertas, suja-se para caraças.

Afastei móveis e sofás, varri tudo, levei os tapetes para a rua e sacudi-os, limpei o pó e apliquei produto nas madeiras, lavei as casas de banho e a cozinha, lavei o chão de uma ponta a outra. Ainda assim não me deu tempo para espelhos e vidros.


Enquanto isso, ia adiantando o almoço: favas guisadas com entrecosto que acompanharíamos com alface temperada com coentros. 

Quando a limpeza estava concluída, fui tomar banho. Entretanto o meu marido, que tinha andado lá em baixo nas suas lutas contra silvados e tojais, regressou e foi também tomar banho. 

A seguir, antes do almoço, ainda fui pôr a roupa a lavar. Roupa de cama, toalhas, panos da louça e roupa nossa. Barrela completa.

Era, portanto, já tardíssimo, a casa reluzindo e rescendendo a sabão de flandres, a pinheiro, a cera de abelhas e a óleo de cedro, quando pus a mesa (na cozinha). Penso que já mostrei imagens da minha cozinha. É ampla, com uma grande bancada que percorre duas paredes. A meio está a mesa de madeira com tampo de azulejos que já cá estava quando há vinte e tal anos comprámos a casa. Quando somos só nós é na cozinha que comemos. E quando está cá toda a gente, é também aqui que se tomam os pequenos-almoços já que os horários são sempre desfasados. De resto, nas outras refeições, não dá pois só cabem seis pessoas e, ainda assim, um bocado à justa -- e não há necessidade.


O meu marido olhou para o relógio da parede, encolheu os ombros e disse que não eram horas para se estar a começar a almoçar. E queixou-se, disse que estava dorido, que lhe doía um ombro. Podar e serrar como se não houvesse amanhã dá nisto -- eu que o diga, que ainda mal restabelecida estou da rotura parcial do supra-espinhoso.

Mas, então, estava eu a começar a provar as favinhas, toca-me o telemóvel. Pensei: caraças que hoje só vou conseguir almoçar lá para a hora da merenda. Quando olhei, vi o nome de um ex-colega. Assustei-me. Àquela hora, num domingo, a ligar-me? Pensei: 'quem será que morreu desta vez?'. Mas não. Era para me dizer que tinha dado o meu número a uma outra ex-colega que tinha saudades de mim e que tinha perdido o número quando mudou de telemóvel. E esteve a contar-me coisas dela e depois, também, dele, da família, de velhos conhecidos. Vive agora no Alentejo, apenas de vez em quando vem a Lisboa. Tem tempo. Tem cultivos, tem um cão, tem como amigos gente da terra. Fala com vagar. E eu não lhe disse que ainda nem almoçado eu tinha, deixei-o falar, ouvi-o.


Depois perguntou por mim, o que tenho feito. Hesitei, pensei que não tenho muito para dizer. O que faço não é bom tema de conversa. Pelo menos, não é tema que a mim me interesse.

Trabalho como uma louca nas empresas, na cidade, de sol a sol, mas, na hora de dizer o que tenho andado a fazer, só me apetece falar na desrama das minhas árvores que estão gigantes, no mato que deu lugar a um bosque encantado, no desbaste das aroeiras que rebentam como umas loucas, na beleza efémera das flores, nas ameixas que já aparecem, no círculo de pedras em cujo centro gosto de me pôr a pensar que me sinto agradecida por ter encontrado o meu bocado de terra, nos carrinhos cheios de varreduras que apanho, no vento que faz dançar as ramagens, no perfume da madressilva e do rosmaninho. E, não fosse ele achar que estou bucólica para além da conta, também não falei dos pássaros que andam alegres, cantarolando como crianças, devorando-me as nêsperas douradas e doces, ou das lagartixas que se põem ao sol ou que vão banhar-se nas poças de água ou no gato branco, malhado de cinza e mel, que nunca antes vi e que agora por lá anda, das rochas que o tempo moldou, da serra ao longe que fica azul ao cair do dia, dos msteriosos sons da noite.


Mas não falei em nada disto. Desviei o assunto. Falei nos meus meninos e ele a rir, 'já são cinco, não são?' e contei proezas deles e rimo-nos.

Depois pensei que também poderia ter falado dos livros que ando a ler ou das palavras aos molhos que aqui vos deixo. Mas não disse. Assuntos meus, privados.

E depois fui almoçar. O meu marido já estava no queijo. Eu disse: 'Assustei-me, pensei que tinha morrido alguém'. Ele disse: 'Percebi isso pela forma como atendeste.' Felizmente não, felizmente só falámos de vida. E eu da minha não soube bem o que dizer.

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As fotografias foram feitas in heaven

Angelina Jordan interpreta uma canção sua 'What is life?'

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