sexta-feira, junho 15, 2018

Hei-de reconhecer-te pelo imortal silêncio





Nem todos os homens se podem vangloriar de estar sendo necessários a alguém. A vida é que está mal regulada. Eu compreendo que todas as energias pudessem ser mais bem aproveitadas. E o meu mal não é outro senão o convencimento em que estou de que tenho energia para mais.

Sou árvore que não frutifica quanto é capaz de frutificar, porque a plantaram em mau terreno... É a engrenagem da vida que está mal montada, amigo. Não é minha a culpa.

Seu tio sempre silencioso e triste? É uma atitude. Não lha invejo, mas acho-a acima do vulgar. Não se assiste impunemene ao espectáculo da vida. Felizmente o silêncio e a tristeza são cicatrizes que não envergonham ninguém. Há quem saia desse espectáculo miseravelmente, como duma derrota vergonhosa, cobardissimamente. Seu tio é um dos que detestam o papel de vítima. Faz bem, faz bem: é de homem.

Embevecido, os olhos ávidos nas minhas vestes em desalinho e nos graciosos caracóis que se espalhavam sobre a testa pálida, sua excelência forcejava por devassar as belezas escondidas. Recitando o seu caviloso discurso, o velho sátiro arrastava-se pelo tapete escarlate. Presto agarrou o pezinho descalço, cobriu-o de beijos húmidos e quentes. Um resto de pudor sustinha-me à beira do precipício, as forças já não respondiam, combalidas pelo inebriante filtro de amor.
Apelei para todos os meios de defesa que reclama a honestidade. O cruel assassino gargalhou sinistro e, desfazendo-se do colarinho engomado, voltou à carga. Servia-se com desenvoltura das armas usadas em tais embates, as mais pérfidas que se pode imaginar e seria impossível descrever.
- Mata-me, ó bruto apache! Não posso mais. Eu morro...
Gelou-me o sangue nas veias, a última duquesa diante do patíbulo.

Nada direi do crocodilo.
É um bicho tímido, reservado, a quem a realidade magoa os dentes.


Amor, hoje teu nome
a meus lábios escapou
como ao pé o último degrau...

Espalhou-se a água da vida
e toda a longa escada
é para recomeçar.

Desbaratei-te, amor, com palavras.

Escuro mel que cheiras
nos diáfanos vasos
sob mil e seicentos anos de lava --

Hei-de reconhecer-te pelo imortal
silêncio.


Vou andando e andando,
meu horizonte é cada vez mais longe:
uma árvore, alguém
que sempre me responda.

_____________________________________________________________


  • Extracto de uma carta de Manuel Laranjeira a Amadeo de Souza-Cardoso, 1 de Novembro de 1906
  • Excerto de Dinorá, moça do prazer de Dalton Trevisan in 'Cemitério de Prazeres'
  • Nada direi de José Alberto Oliveira in 'Animal animal, um bestiário poético'
  • Amore, oggi il tuo nome de Cristina Campo in 'O passo do adeus'
  • Vou andando de José Bento in 'Alguns motetos'
Pinturas de Clyfford Still (Estados Unidos, 1904 – 1980)
Lá em cima Tal Ben Ari aka Tula, Roberto Luti e a PFC Band interpretam Teach Your Children | Playing For Change
_____________________________

Sem comentários: