terça-feira, maio 29, 2018

Um anjo da guarda chamado Mamoudou





De vez em quando o homem aparece. No inverno, quando chego é muito de noite. Ele põe-se no recanto junto à porta. Ali é abrigado, não chove, não bate o vento. Quando se vem da rua, não se vê. Apenas quando se vira para entrar no prédio é que de vê. Assusto-me sempre. Não se vem à espera de ver um vulto ali no chão. Não via se era novo ou velho, estava escuro e ele deitado. Se era mais cedo, por volta das oito e picos, estava soerguido, encostado à parede que lhe serve de cabeceira. Assustada, não tentei nunca olhar bem, creio que por pudor, respeito pela sua privacidade. 

Agora voltou e é de dia até mais tarde. No outro dia, não estava nada à espera, como sempre assustei-me. Nesse instante, desejei que ele não tivesse visto que eu me tinha assustado. Estava outra vez encostado à parede, em cima dos cartões, coberto por uma manta escura. Percebi que estava um vulto ao lado, talvez uma mochila ou um saco. Num relance vi que é de meia idade, talvez mais novo, talvez abaixo ainda dos quarenta, que tem barba, que estava vestido de preto. Desviei o olhar, abri a porta. Pensei que deveria ter dito boa noite. Mas não sei se o incomodaria com isso, talvez não queira ser visto assim. Não sei.

Faz-me impressão. Um sem abrigo a dormir à nossa porta é coisa que incomoda. Não sei definir porque me incomoda. Talvez porque é a constatação próxima do abandono. Ou a constatação de que o infortúnio pode apear qualquer um. Ou porque há uma tristeza muito grande numa situação assim e a gente não sabe o que fazer. Ou porque pensa que é um caso em muitos.

Um outro dia, era já mais tarde, regressávamos os dois, já ele dormia ou, pelo menos, estava deitado e todo tapado. Assustei-me com o vulto. Disse: 'Mas com tanta assistência, porque não procurará ele apoio? Não será que deveríamos avisar que viessem cá oferecer-lhe guarida?'. O meu marido achou que não, que o deixássemos estar em paz. Lembrei-me do curso que fiz, do que nos ensinavam, que deveríamos sempre respeitar as opções de cada um, que muitos sem-abrigo vivem na rua por opção sua.

De manhã, por mais cedo que seja, já lá não está. Nem vestígios dele. 

Quando passo na A1, na zona de Vila Franca, olho sempre aqueles prédios grandes que nunca foram acabados. Entre pilares, há sempre roupa estendida, uma cadeira, provas de que ali vive gente.

Admiro-os desde que vi uma reportagem na televisão. Gente digna. Gente muito pobre. Nada têm e, no entanto, do pouco que conseguem fazem uma casa. Diziam, na vizinhança, que são pessoas simpáticas, bondosas. Apenas não conseguem trabalho, apenas lhes falta suporte, apenas se viram despojados de tudo.

Há uns dois ou três anos vi um filme que me impressionou muito. Samba. A história de um imigrante, sem documentos, clandestino, vulnerável. Um filme extraordinário que mostrava a vida da gente invisível. Com medo de ser preso e de ser deportado, sujeitava-se a tudo, a toda a espécie de exploração e violência. Tinha um coração grande e era lindo. A rapariga do filme apaixonou-se por ele. É certo que as raparigas dos filmes gostam de se apaixonar pelos rapazes corajosos que se encontram em situações de fragilidade. Quando são bonitos, têm umas mãos generosas de quem sabe dar abraços longos e quentes e um olhar meigo e carente ainda mais.

Hoje vi aquele filme com o Mamoudou Gassama.

Vi sem perceber como era aquilo possível. Como é que uma pessoa normal trepa a um quarto andar em meio minuto, sem cordas, sem qualquer apoio? Se eu visse uma criança suspensa num quarto andar, desatava a gritar, a chorar, haveria de querer ligar para os bombeiros e não saberia que número ligar, talvez me pusesse de braços abertos cá em baixo sabendo que de nada serviria, impotente, aflita. Não me ocorreria trepar para salvar a criança. Não sou ginasticada, por muito que tentasse não o conseguiria. Mas será que o Mamoudou alguma vez suporia que seria capaz de tal milagre? Se calhar não. Conseguiu-o porque a generosidade falou mais alto, porque a coragem superou o medo.

A França rendeu-lhe homenagem mas é pouco. Todos os presidentes de todos os países da Europa deveriam fazer o mesmo. Todos deveriam abrir-lhe as portas, dar-lhe emprego. Todos deveriam abrir o coração aos imigrantes, aos pobres, aos que nada têm senão a sua alma, a sua força. A velha Europa precisa do sangue nobre desta boa gente.

Emociono-me ao ver o filme. Já vi algumas vezes sem perceber como é que um vulgar ser humano consegue subir a um quarto andar mais depressa do que voasse pelas escadas. Talvez Mamoudou seja um anjo, talvez os seus fortes braços sejam longas asas, talvez seja o anjo da guarda do menino que estava sozinho em casa, o menino cujo pai se calhar também tem uma vida complicada e cuja mãe, noutro país, se calhar também não tem uma vida fácil. A vida não é fácil para os pobres, para os despojados. O que os salva é a sua força de deuses e o seu coração de fazedores de milagres.



E o que Mamoudou, 22 anos apenas, já andou para ali chegar. O que ele já viu. O que ele já viveu.

E, no entanto, quando viu a criança pendurada apenas pensou em ir salvá-la. No vídeo abaixo ele conta.


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(No post que se segue a conversa é outra. De resto, nada de mais: é sabido que eu é mais bolos)