Contei aqui uma vez mas recordo. Desde há muitos anos e por razões que não vêm ao caso acontece não usar transportes públicos. Se calha ficar sem carro porque tem que ir à oficina já parece que estou a pôr em causa a minha sobrevivência e só fico tranquila quando me asseguram que me trazem um de substituição.
Lido assim e, ainda mais, por quem não tem estas mordomias, há-de parecer que estou para aqui a armar-me ao pingarelho. Mas claro que não estou. As coisas são o que são e as minhas circunstâncias são estas. Claro que preferia ter também motorista mas essa sorte só tenho ao fim de semana ou de vez em quando, em viagens mais longas (mas, nesses casos, tenho que ter o trabalho de cravar alguém).
Andar de metro, de autocarro, de comboio ou de metro é experiência que não tenho há milénos.
Mas uma vez aconteceu ter que ir de autocarro não sei onde. Não faço ideia porquê. Provavelmente teria o carro na oficina e, talvez por estar de férias, ninguém tratou de me arranjar carro de substituição e não estive para me dar a esse trabalho. Não sei. Nem me recordo onde fui. O que sei é que foi uma experiência fascinante.
Mas uma vez aconteceu ter que ir de autocarro não sei onde. Não faço ideia porquê. Provavelmente teria o carro na oficina e, talvez por estar de férias, ninguém tratou de me arranjar carro de substituição e não estive para me dar a esse trabalho. Não sei. Nem me recordo onde fui. O que sei é que foi uma experiência fascinante.
Relembro.
Informei-me de percursos e horários e fui para a paragem de onde partia o autocarro um bom bocado antes do horário. Quando ele chegou, entrei. Fiquei lá sozinha. Passado um bocado começaram a chegar mulheres. Todas negras. Tenho ideia que todas gordas. E tenho ideia que todas se conheciam. Curiosamente sentava-se cada um em seu banco. Percebi depois porquê. Pousaram um saco no assento ao lado e de lá tiraram o farnel. Pão. Desataram todas a comer. Rapidamente um intenso cheiro a pão com chouriço alastrou pelo autocarro. E conversavam alto e riam de gosto enquanto comiam.
Eu estava encantada. Ouvir aquelas conversas e aqueles risos era, para mim, pitéu do melhor. Depois o autocarro partiu e, noutras paragens, outras pessoas iam entrando, a grande maioria negras. Percebi que eram empregadas de limpeza. Vinham de trabalhar em casas particulares e iam trabalhar nas limpezas dos escritórios, ao fim do dia. E iam naquela alegria. O sentido de humor e a energia delas surpreenderam-me de uma maneira que ainda hoje, anos depois, recordo a minha admiração.
A vida de muita gente é árdua. Não sei como fazem para conciliar com a vida pessoal e familiar.
Aliás, sei.
Recordo-me daquele ano em que fiz voluntariado na escola secundária que é considerada uma das mais problemáticas do país (senão, mesmo, a mais problemática). Já falei algumas vezes dessa experiência. Não é o assunto de hoje pelo que não vou deter-me nos diversos casos que me emocionaram e me mostraram uma dos lados sombrios da vida. Quero apenas falar duma jovem negra, também reboluda, também extrovertida, também muito faladora.
A toda a hora dizia que queria deixar de estudar, que estava ali apenas porque era obrigada, que queria chumbar para poder deixar de vez a escola. Já devia ter uns dezoito anos e andava ainda no 8º ano. Não sabia nada. Não prestava atenção a nada. Não queria participar em nenhuma actividade. Desinteresse puro. Foi ela que, quando eu escrevi no quadro a palavra 'bondade' e pedi que escrevessem alguma coisa sobre isso, desatou a rir, lendo a palavra com aquele sotaque negro, sincopando a palavra, silabando-a com ar de quem vê um alien em forma de palavra: "bon-da-de". E muito alto, rindo: O que é isso? Bon-da-de? Nunca ouvi. Bon-dade, bon-da-de. Ahaahaha.
Expliquei. Não prestou muita atenção. Era um conceito que lhe era estranho.
Expliquei. Não prestou muita atenção. Era um conceito que lhe era estranho.
Quando lhe perguntei que profissão queria ter, olhou-me admirada. Não queria nenhuma. Quando lhe perguntei porque não queria aprender, respondeu que tinha que ficar em casa a tomar conta dos irmãos porque a mãe ia trabalhar e os irmãos mais novos ficavam em casa sozinhos. Fiquei a olhar. Nestes momentos, sinto crescer em mim uma emoção forte e sinto que felizmente sei conter-me porque, por dentro, as lágrimas avançam como uma onda. Ela deve ter sentido que eu queria perceber melhor porque me explicou. Quando aqui estou, só penso neles. Devia estar lá a tomar conta deles. A minha mãe não tem a quem os deixar. Nessa altura, estava a falar baixo e sem se rir. Eu queria dizer-lhe que deveria estudar, para poder ter uma melhor vida, para melhor poder ajudar os irmãos. Mas como dizer isso, sabendo das outras crianças sozinhas em casa?
Como se fazem adultos saudáveis e alegres e como é que estas mulheres que, para poderem sobreviver e alimentar os filhos, trabalham de manhã à noite, deixando os filhos entregues a si próprios, ainda são capazes de rir e brincar, abstraindo-se das dificuldades e festejando a vida, é coisa que me enche de espanto e admiração.
Talvez seja a pele cor de chocolate que tem o condão de lhes adoçar o coração. Mas não sei.
Talvez seja a pele cor de chocolate que tem o condão de lhes adoçar o coração. Mas não sei.
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Há excepções. Mas são isso mesmo: excepções.
Misty Copeland
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E os casos excepcionais: Mandela
[Invictus - lido por Morgan Freeman]
E os casos excepcionais: Mandela
[Invictus - lido por Morgan Freeman]
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As fotografias são da autoria de Tim Walker
Lá em cima, quem canta é Le Gateau Chocolat, esta outra gloriosa excepção
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