No meio de tanta subjectividade quem, de entre todos, se atreverá a levantar a voz e dizer: eu sei?
O que é a beleza? O que é a arte? O que é a felicidade?
Tempos houve em que eu julguei saber alguma coisa de algumas coisas. Agora está para mim muito claro que nada sei seja do que for. E digo-o sem falsas modéstias ou desconsolos. Penso que agora, sim, estou a atingir o patamar da ignorância que alguns tolos querem confundir com sabedoria. Saber que pouco aprendi e que já não me resta tempo para aprender muito mais e que, ainda assim, mesmo que muito aprendesse isso seria nada, aproxima-me da serenidade de espírito que alimenta os insignificantes grãos de poeira de que o universo está cheio.
Algures, onde menos esperamos, talvez mesmo em nossa volta, outras vidas acompanham sem interesse o insano movimento desta espécie tão irrelevante mas tão estupidamente petulante. Quando caminho, atenta a tudo, não vejo quase nada do muito que vive à minha volta. E assim, certamente, outros seres, algures por aí, em relação a nós e nós a eles.
De manhã, levanto-me, abro as grandes portas de vidro que dão para a grande azinheira, aspiro o ar puro, ouço os pássaros, olho o céu e penso: pudesse eu. Mas não sei sei o que faria nem porque o faria. Penso: o quê e para quê? E não sei a resposta. Penso: se calhar, se pudesse, era mesmo só isto.
Depois corrijo-me: mas se pudesse mesmo, mesmo, mesmo? Mas não consigo, é pensamento abstracto demais para que me motive a imaginar.
Forço-me. Se agora, momento concreto e com o concreto propósito de aqui vos contar, me puser a pensar: se tudo pudesse, o que faria?
Forço-me. Se agora, momento concreto e com o concreto propósito de aqui vos contar, me puser a pensar: se tudo pudesse, o que faria?
Fecho os olhos para tentar abstrair-me de respostas racionais. Ocorre-me: uma casinha entre as árvores. Uma casinha de madeira empoleirada entre a copa das árvores. Teria uma varanda e nela umas cadeiras também de madeira para adorar o nascer e o pôr do sol e os dias de céu azul e os de chuva e tempestade. O meu amor e os meninos, os grandes e os pequenos comigo, a lancharmos, a conversarmos, a olhar o vasto horizonte. Juntos, sem pressa. Talvez também um palácio encantado e plebeu debaixo da terra, com clarabóias imensas. Um refúgio secreto, um ninho no ventre da terra onde também vivessem raposas prateadas, corujas muito reservadas, lobos silenciosos, gatos transcendentes. Uma alegria para os meninos. Labirintos, grutas, tesouros, poesia a ouvir-se das paredes. Magia em estado puro. Ou um barco com o fundo e as paredes transparentes para poder espreitar o fundo do mar e uma casinha pequena lá dentro mas onde coubesse o núcleo familiar sem o qual não vivo. Ou um armazém gigante rente ao rio com ateliers para pintores e escultores, com esplanadas para poetas e esconderijos para outros escritores, com estúdios para músicos, com oficinas para artesãos, com cozinhas para cozinheiros alquimistas, com abrigos para fotógrafos e outros andarilhos e com palcos para diseurs e para bailarinos e, nos fundos, um quartinho para mim, simples, uma cama apenas, para lá poder pernoitar nos dias em que me deixasse encantar de manhã à noite, no meio de artistas e demais gente boa. Ou uma casa antiga, grande, com um pátio interior e, no centro do pátio, um círculo de laranjeiras perfumadas, e, em volta do pátio, claustros frescos e com bancos para neles podermos ler e conversar e em que, em cada ala, pudesse viver eu, os meus filhos e respectivas famílias e a quarta ala fosse de espaços comuns: uma grande cozinha com uma mesa gigante ao meio, uma maravilhosa biblioteca, uma sala acolhedora com uma grande lareira.
Se eu pudesse.
Mas isto, sabendo eu que nunca poderei tanto e, sobretudo, sabendo eu como sou tão efémera, bicho tão frágil, tão impoderoso.
Um pinheiro morreu. Terá que ser abatido. Não me vai custar. Pensarei: é a lei da vida. Já vi morrer de morte natural ou acidente meterológico várias árvores. Mas as que vivem, enquanto vivem, crescem tanto. E outras têm nascido. Uma vez estávamos no cinema, não nos apercebemos do vendaval. No fim do filme, uma chamada do vizinho: algumas árvores tinham tombado. Uma notícia triste. Uma aflição. Quando lá cheguei, sofri como se fossem gente. O grande pinheiro que o meu pai, anos antes, tinha plantado e que se erguia orgulhoso sobre a paisagem estava tombado, como um cavalo ajoelhado. Também teve que ser batido. Não quis assistir. Só me apetecia chorar. A parte do tronco que estava enterrado e do qual partiam as raízes ainda vive, como um coração a céu aberto. Tenho-o ali. Nele nascem ervinhas, cogumelos. Amanhã fotografo-o para um dia vos mostrar. Tudo na natureza se transforma, as plantas multiplicam-se, nascem sem que saiba como. E chegam mais pássaros, certamente bichos vindos de outros lugares. A vida acontece independentemente de nós.
by Jean-Jacques Pigeon |
Nem sei porque estou com isto. Talvez, justamente, porque nada sei. Talvez porque quando aqui estou me surjam mais perguntas.
O que é uma boa vida? Será a superação dos nossos limites? Ou a ignorância deles? Ou sentir a terra como um bicho leviano e feliz?
E o que é a beleza? É aquilo que nos dá a noção do que é a transcendência? Ou o que nos emociona sem explicação e não é amor?
E qual a justa medida da beleza? O que está próximo da total simplicidade ou o que é fruto do excesso ou de requintada sofisticação?
Não sei. Não faço ideia.O que me tranquiliza é que não temos que escolher. Podemos viver, deslocando-nos inocentemente entre o nada e o muito, entre o claro e o escuro, entre o racional e o onírico. Podemos usar a nossa frágil existência para degustar a elegância e a sensibilidade do mundo e para perscrutar os desconhecidos caminhos da beleza e da felicidade.
by Raqib Shaw |
--------------------------------------------------------------------------------
Que entrem, então, os próprios, em pessoa -- Raquin e Jean-Jacques -- dois seres muito opostos, e que nos ajudem a perceber o que é a beleza, a arte, quando é que uma obra está pronta, o que se pretende de uma obra de arte. Que entrem. Precisamos de ficar ainda mais confusos.
Raqib Shaw
Raqib Shaw is an Indian-born, London-based artist whose extraordinary paintings feature rich colours and intricate detail. The artist’s works evoke the Old Masters, such as Hans Holbein and Hieronymus Bosch, as well as reflecting the ornate style of Persian miniatures and Kashmiri and Japanese textiles.
Jean-Jacques Pigeon
.....................................................................................
As fotografias que escolhi para aqui tais como as do post abaixo foram feitas esta segunda-feira in heaven
-------------------------------------------------------