sexta-feira, fevereiro 23, 2018

Afinal acabo sempre por falar de ti


No balanço geral poucas coisas ficarão. Poucas. Claro que depende do tempo que haja para as enumerar.

De vez em quando lembro-me daquele momento um bocado assustador e do qual já aqui falei. Tinha saído da autoestrada e, para entrar numa estrada nacional, descia-se uma estrada de inclinação considerável até uma rotunda e da rotunda saía-se, então, para a estrada.

Quando iniciei a dita acentuada descida, percebi que tinha ficado sem travões. Eu a carregar no pedal e nada. O carro era daqueles todos cheios de electrónicas e com travão de mão inexistente pelo que fiquei sem saber a que me agarrar. Tudo aquilo se passou numa ínfima fracção de tempo. O carro descia desabaladamente e eu só tive tempo para pensar que a coisa ia acabar mal já que a rotunda estava sempre cheia de carros e camiões. Quando o carro chegou à rotunda percebi que podia passar entre carros desde que entrasse para dentro da rotunda. Passando desenfreadamente pelo meio do trânsito, galguei a rotunda, que era alta, e, nesse instante ocorreu-me que ia entrar pela chapa do monumento que estava a meio e que, se calhar, ia ser degolada. E pensei que podia estar a viver os meus últimos instantes e, nessa infinitésima fracção de segundo, pensei que nem tinha tempo de pensar capazmente nos meus filhos e no meu marido. 

O tempo que durou não se compara com o tempo que estou a levar a fazer a descrição. Foi um tempo de nada. Ínfimos segundos. Tudo tão rápido e, no entanto, deu para acontecer tudo o que aconteceu. Quando o carro embateu no alto passeio da rotunda, dispararam os airbags e foi um estrondo mas coincidiu com o estrondo do carro ter ido de encontro ao monumento e a uma árvore que estava ao lado, ficando entalado, inclinado, quase ao alto. Entretanto, encheu-se de fumo. Tudo ao mesmo tempo e a coincidir com aqueles breves pensamentos.

Não senti medo. Talvez porque não tenha tido tempo. Apenas constatei: Se calhar vou morrer. Ponto. E nem tenho tempo de pensar nos meus amores. Ponto.

Mas logo a seguir, com o carro ao alto, cheio de fumo, pensei: Olha. Não morri. 

E a seguir: Estarei bem?

Mas de imediato: Se calhar é melhor sair não vá este fumo querer dizer que o carro vai explodir.

Com dificuldade consegui sair do carro.

Olhei para mim, olhei para as minhas mãos, e pensei: Olha, parece que estou inteira.

E estava. Por uma sorte milagrosa, estava bem. 

A seguir fiquei com o peito dorido, as mãos e os pés também doridos, tenho ideia que roxos. Mas nada de especial. E isso foi depois. Naquela altura não tinha nada.

Começaram a parar carros, pessoas a virem a correr ter comigo, toda a gente a dizer que eu devia ir ao hospital. As pessoas deviam achar que o meu bom estado era aparente, que, se calhar, por dentro estava desfeita. Sosseguei-as, estava bem. Mas o carro não. O carro estava completamente espatifado (o seguro declarou perda total). E eu, ali ao lado, no meio da rotunda, inteira e de saltos altos, também inteiros. E só pensava: Ainda bem que não morri. É que nem tempo tinha tido para pensar capazmente nas pessoas de quem, em condições decentes, deveria fazer uma despedida mental como deve ser.

Mas agora imagine-se que, um dia com calma, me ponho a enumerar os momentos bons da minha vida, aqueles que quereria que estivessem sempre frescos na minha memória.

Claro que aí constaria o nascimento dos meus filhos que, por eu não querer anestesias nem cesarianas e por serem partos complexos, foram coisas do caraças pelas quais passei cheia de dores e exausta mas que acabaram em bem, proporcionando-me o presenciamento maravilhoso do milagre de assistir a duas pessoazinhas a saírem de dentro de mim. E constaria o casamento dos meus filhos, momento emocionante, eles, cheios de boas esperanças e de futuro, a iniciarem o seu percurso de vida. E constaria a suprema e redobrada alegria de os ver felizes com os seus próprios filhos, meninos queridos do meu coração. Mas constariam também as paixões intensas que vivi. E teria lugar de relevo o primeiro beijo trocado com aquele que se instalou feito um posseiro dentro do meu coração. O primeiro e tantos outros, tantos loucos momentos de paixão.

No balanço geral o que fica de verdadeiramente importante são os momentos bons passados com aqueles que amamos, os momentos em que a emoção nos envolveu de forma positiva e feliz, os momentos de carinho, de partilha, de motivação e realização. Fica o amor. Fica a paixão. Fica o sonho. 




Aqui de novo estou, cantiga, neste
lugar de eleição onde retomo a escrita.
É um vagar premeditado, no regresso ao corpo,
em demorado gosto de bebida dupla. Reparo: a carga
das palavras, canga difícil para quem
deste modo quer fazer o mosto. A poesia
já regressa, por entre cortinados e veludos,
e o quarto, a sala, os corredores, o vão
da escada, ressoam com os seus passos,
afinal tão leves -- a neve no soalho,
difícil no silêncio. Dizia do regresso: assim
desfaço os nós do medo: floresta e engano,
areal distante. Sorris e tudo é novo.
Sim: acabo sempre por falar de ti.



O poema é Afinal acabo sempre por falar de ti de Eduardo Guerra Carneiro in 'Os cem melhores poemas portugueses dos últimos cem anos', organização de José Mário Silva

A primeira fotografia provém do The Guardian onde dela consta a seguinte legenda:
  • Elinor Carucci’s Kiss, 2017
This image was commissioned for the viral New Yorker article Cat Person by Kristen Roupenian. Carucci is an Israeli American photographer whose previous work on motherhood gained her much acclaim
Photograph: Elinor Carucci/Courtesy of the artist and Edwynn Houk Gallery, New York and Zurich
A segunda e a terceira: 
  • Flores
Fotógrafo: Robert  Mapplethorpe


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A minha filha, logo que acabei de escrever, enviou-me uma sms perguntando-me porque ando a falar tanto de morte. Disse-me para eu bater na madeira. 

Não me tinha apercebido.

Mas hoje não é de morte que falo. Falo de balanços. Balanço geral. Não de balanço final. E balanços gerais a gente pode fazer todos os dias, mesmo sentindo-nos cheios de vida. Balanços a gente pode fazer para deitar fora da cabeça o que não presta e deixar florir o que é bom. Balanços a gente pode fazer apenas para pôr as coisas numa linha do tempo e perceber que tem que relativizar o que não interessa. Hoje é disso que falo. Do que é importante na vida.

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E a propósito

Façamos amor, não muros -- segundo David LaChapelle, com Sergei Polunin



E viva a vida.

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