sexta-feira, dezembro 01, 2017

Croniqueta de um dia do capeta




Ando para fazer um post sério desde aquela cena das perguntas ao Governo, a propósito das alarvidades que a Cristas e um qualquer outro triste do PSD disseram sobre o assunto. Recebi informação muito interessante da parte de um Leitor que é investigador e que participou no trabalho e pedi-lhe autorização para transcrever parte do que me disse. Já a tenho. Não tenho é tido a disponibilidade mental para o fazer.

Esta semana não tem sido especialmente tranquila. Felizmente é das curtas. Mas a verdade é que não apenas, durante o dia, não tenho conseguido saber a quantas ando como, ao chegar aqui à noite, disposta a informar-me, invariavelmente me dá o sono e é com considerável esforço que me aguento acordada para dar um arzinho da minha gracinha. E ponham zinho e cinha nisso.

Por isso, sendo certo que guardado está o bocado para quem o há-de comer, ainda não será hoje.

Tive um dia de cão. Mas de cão rafeiro. Com o caneco, que dia. 

Conto.

Passo por cima dos pormenores que preencheram o dia e que, de cabo a raso, perturbaram a minha beleza, para me reportar apenas à recta final.


Tinha um compromisso às seis. Saí cedo do escritório para chegar a horas. Pois, sim. Trânsito parado, um acidente. Tentei ligar para avisar que ia chegar atrasada. Não consegui. Trânsito, stress, trânsito. Depois, lá, dificuldade em arranjar lugar para o carro. Longe. Mais um percurso a pé, de permeio. Cheguei com meia hora de atraso. Desagradável. Odeio chegar atrasada, causar transtornos a outros. 

Despachei-me por volta das oito. Lá fui a pé até ao carro, noite, a rua deserta. Depois trânsito, trânsito. Nisto, sinto o pneu bater em qualquer coisa. Não liguei. Já estava ao telefone com a minha mãe. Reparo, então, numa mensagem no visor: pneu sem ar, parar, verificar. Lindo. Começo a sentir o carro a descair, um barulho. Tento interromper a minha mãe, dizendo o que estava a passar-se. Pior. Logo ela preocupada: rebentou-te o pneu? cuidado, é perigoso... e agora?. Lá a sosseguei e lá consegui desligar o telefone. Liguei os piscas. Fiquei sem saber o que fazer, ali não dava para parar, ir com o carro assim até a casa estava fora de questão. Liguei ao meu marido. Nestas alturas, sinto mesmo a falta dele. Disse-me para ir devagar e levar o carro para um sítio ali perto, perto de uma estação de comboio, junto às paragens de autocarro. A custo lá cheguei. Liguei para a assistência em viagem. Disseram que iam mandar um reboque. O meu marido avisou-me: veste o colete. Nunca me teria lembrado de tal. Lá andei à procura e lá o encontrei. 


Estava eu a vesti-lo, aproxima-se uma criatura alta, com ar curioso mas não mau aspecto. Não percebi se era um homem parecido com uma mulher, se o oposto. Alto/a, de calças, colete inflado, gorro, óculos redondos. Voz fina demais para homem, grossa demais para mulher. 
Sorrindo, disse-me: 'Quer que eu a ajude?'.
Meio surpreendida, respondi: 'Não, obrigada'.
A criatura insistiu: 'Posso ajudá-la'.
Respondi: 'Deixe, obrigada, não preciso'.
Ele/a insistiu, sorrindo: 'Não precisa...? Eu ajudo-a... A sério...'.
Eu, tentando pôr fim à conversa: 'É preciso mudar o pneu. Já pedi ajuda, obrigada'.
A criatura insistiu: 'Isso já eu vi. Mas eu sei mudar o pneu. Ajudo-a'.
Já um bocado desconfortável e, até, meio assustada, fui definitiva: 'Não quero, obrigada. Deve estar a chegar quem eu chamei'.
Encolheu os ombros, sorrindo. Depois afastou-se. 

Pouco depois, chegou o reboque. O senhor lá procurou o pneu de reserva, um daqueles pequenos e provisórios. 


Estava ele a elevar o carro e eu na berma, aproxima-se um homem de uns cinquenta anos, magro, de óculos, e diz-me, mostrando-me o telemóvel: 'Tenho telemóvel, é novo, comprei-o há dois dias mas já está bloqueado. Bloqueado. Fiquei de me encontrar aqui com uma pessoa mas nunca mais chega e eu não consigo ligar. Empresta-me o seu telemóvel?'. 

Pensei: Mas o que é isto? No espaço de poucos minutos, duas criaturas desconhecidas a maçarem-me desta maneira...? Será isto normal? E se pega no telemóvel e abala a correr?
Mesmo ao meu lado, de mão esticada a pedir-me o telemóvel.
Pensei: Estando aqui no chão o do reboque, não ia roubar-me... Então, disse-lhe: 'Diga-me o número que eu faço a chamada'. (E não me perguntem porque é que pensei que, marcando eu o número, estava mais defendida. No fundo, deve ter sido apenas para o ter comigo mais tempo...)
Deu-me um papel com um número. Mal o marquei, estendeu a mão para agarrar o meu telemóvel. Pensei: Vai fugir. Mas não.
Falou: 'Então, onde é que estás?' Quando desligou, disse: 'Diz que está ao pé da bomba'.
O do reboque disse: 'Eh pá, isso é do outro lado, não vai ser fácil virar para vir para aqui'.
Então o outro: 'Então dê-me outra vez o telemóvel para eu avisar que vou para o lado de lá, atravesso a estrada'.
O do reboque: 'Eh pá, não, não faça isso, não consegue'.
Mas já ele ia a correr para atravessar a estrada, esquecendo-se do segundo telefonema.
O do reboque: 'Eh pá, é maluco, ainda fica debaixo de algum'.
Passado um bocado, apareceu o outro: 'Não deu, ainda ficava debaixo de algum, mas vou ali para aquela ponta' e lá seguiu, quase a correr, não sei para onde.
Uma pessoa andando sempre enfiada no carro nem se apercebe destas situações e destes personagens da vida real. Fiquei a pensar: o primeiro/a apenas simpático/a, o segundo apenas a querer fazer um telefonema e eu, assustadiça, com medos a toa... Frioleiras de dondoca que nunca sai com o pé à rua de verdade. 


No fim, o senhor do reboque disse: 'O pneu furado é maior do que o buraco onde estava o outro. O melhor é tirar as coisas que ali tem e, se tiver uma mantinha, ponha para o pneu não sujar tudo'. Então tirei de lá a cadeirinha e pu-la no banco de trás ao pé dos outros dois banquinhos, tirei o poncho de renda, a capa de lã, um casaquinho branco que lá estava esquecido, arrumei os dossiers num canto, o chapéu de chuva, o saco com os ténis das caminhadas e mais umas quantas coisas. O senhor esperou pacientemente. Felizmente tinha lá uma colcha que tinha levado para o último pic-nic. Pôs o pneu em cima.

Com isto tudo já deviam ser nove da noite ou mais, nem sei. Eu a pensar que ia chegar cedo a casa e que ainda poderíamos dar um passeio na praia... e toda esta sucessão de maçadas. Pensei: Vou ligar a ver se ainda dava para repescar o programinha.



E, então, ouvi a notícia do Zé Pedro. Fiquei como que em choque.

A minha filha tinha ido ao concerto do Coliseu e tinha-me contado que ele estava magro, magro, muito debilitado, que lhe tinha feito muita impressão. O meu marido atendeu. Já sabia. Também estava triste. Depois ligou-me a minha filha. Estava impressionada, triste.

Fomos passear, ainda. Tarde. A noite fria. Não falámos mais no assunto. Dizer o quê?

Agora, enquanto escrevia isto, estava a dar uma reportagem na televisão. Lá estava ele com o seu sorriso e a sua fala tranquila, lá estava ele e a sua guitarra.

Vão desaparecendo. Aos poucos, as pessoas que, de alguma forma, fizeram parte da nossa história vão saindo de cena, vão integrando o vasto espaço da nossa memória. Sendo uma coisa normal não deixa de ser triste.


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Fotografias do National Geographic

Lá em cima Dmitiri Hvorostovsky -- que, soube-o pelo Fernando, também partiu por estes dias -- interpreta Cortigiani, vil razza dannata de Verdi. Foi em Maio, de surpresa, na Metropolitan Opera Gala.

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