Benedita foi tomar um duche. Apanhou o cabelo, vestiu uma roupa leve. Jantaram. Benedita e Filipe. Meninha acompanhou-os, bebendo chá e petiscando bolachas marinheiras com compota de laranja.
De vez em quando o semblante de Benedita toldava-se. Por vezes, dizia em voz baixa: 'Preocupada...' Mas logo os outros diziam: 'Não penses nisso, descansa' Não sabiam mas intuíam que o problema da mãe não devia ser grave. Talvez não soubessem que as doenças da alma anulam a alegria de quem as vive e de quem lhes está próximo. Mas Benedita estava esgotada e qualquer palavra de ânimo lhe servia de âncora ou para a fazer sentir menos culpada por não passar vinte e quatro horas por dia tentando retirar a mãe do poço de angústias em que insistentemente tentava afogar-se.
No fim do jantar, voltaram para a sala. Filipe falava, contava histórias, tentava aligeirar o ambiente. Meninha levantou-se, pediu para ir lavar a louça, depois pediu para ir buscar um pente e pentear Benedita. Explicou: 'Mexer na cabeça, acalma. Deixa eu pentear, fazer trança, escovar'. Benedita, que antes de jantar, chegou a dar uma animada, tinha-se ido abaixo e já não conseguia argumentar.
Meninha chegou da casa de banho com uma braçada de material. 'Senta numa cadeira'. Pôs-lhe uma toalha pelos ombros e começou a penteá-la. Apanhou o cabelo, soltou, fez tranças, escovou. Benedita deixou. Sentia-se mais tranquila.
Depois Meninha lembrou: 'Queria que eu contasse história, não era, Beny? História eu não tenho pr'a contar, não, mas Filipe que é vivido deve ter. Porque não pede a ele que lhe conte história?'
Depois Meninha lembrou: 'Queria que eu contasse história, não era, Beny? História eu não tenho pr'a contar, não, mas Filipe que é vivido deve ter. Porque não pede a ele que lhe conte história?'
Filipe não percebeu mas Benedita gostou da ideia. 'Senta-te aqui à minha frente, Filipe, conta-me de ti'.
Filipe obedeceu. Pegou numa cadeira e sentou-se. Os seus joelhos quase tocavam os joelhos de Benedita.
E, então, em voz baixa, de vez em quando fechando os olhos, começou: 'Já vivi muito, sim. Já tive muitas ideias e achava que era especial por ter tantas ideias. Já ganhei muito dinheiro e achava que era rico e que sempre me sentiria motivado a ter mais. E já tive muitos ideais e convicções e achava que isso era um rumo de que nunca me desviaria. Até que percebi que vivia melhor se aceitasse não saber nada. E que vivia melhor se não tivesse que me preocupar com as aplicações do dinheiro. E que vivia melhor se aceitasse que o rumo se fosse desenhando a cada dia. Fui muito bom aluno e tinha orgulho disso. Agora reconheço que pouco me lembro do que aprendi. E era muito ambicioso a nível profissional. Fiz uma carreira internacional. Sacrifiquei tudo, muitas vezes mudei de casa, mudei de país. E mudei de mulher. Cheguei a estar casado e a achar que estaria casado para sempre. Mas tudo foi perdendo relevância. Desabituei-me do afecto. Desabituei-me da mulher por quem me tinha apaixonado ainda adolescente, desabituei-me da minha filha, desabituei-me dos meus pais. Seduzir mulheres passou a ser um hobby. Olhar para elas e pensar: 'De quanto tempo vou precisar para a ter nos meus braços?' e o tempo ia sendo cada vez menor porque fui aperfeiçoando a técnica. Por fim trabalhava em Paris onde tinha um apartamento. Fiz coisas de que hoje me arrependo. Excessos. Abusos. De vária ordem. Depois, um dia, sozinho, senti-me mal. A custo, cheguei ao hospital. Fiquei internado. Não recebi visitas. Longe da família, sem querer ligar a amigos, conhecidos ou namoradas. Os médicos mandaram-me parar com os excessos. Mas não foram os médicos. Fui eu. De repente, parecia-me que estava a fazer tudo mal. Despedi-me. Estive uns meses sem trabalhar. Depois resolvi criar esta minha pequena empresa de consultoria em patentes e marcas. E dedicar-me à fotografia. Calhou, um dia, ver numa esplanada uma figura conhecida do mundo da moda. Pedi para fotografá-la. Foi o princípio. Tenho tido sorte. Sinto-me livre. Reaproximei-me dos meus pais, já tão velhos, reaproximei-me da minha filha. É mais velha que vocês. Está grávida. Vou ser avô.'
E, então, em voz baixa, de vez em quando fechando os olhos, começou: 'Já vivi muito, sim. Já tive muitas ideias e achava que era especial por ter tantas ideias. Já ganhei muito dinheiro e achava que era rico e que sempre me sentiria motivado a ter mais. E já tive muitos ideais e convicções e achava que isso era um rumo de que nunca me desviaria. Até que percebi que vivia melhor se aceitasse não saber nada. E que vivia melhor se não tivesse que me preocupar com as aplicações do dinheiro. E que vivia melhor se aceitasse que o rumo se fosse desenhando a cada dia. Fui muito bom aluno e tinha orgulho disso. Agora reconheço que pouco me lembro do que aprendi. E era muito ambicioso a nível profissional. Fiz uma carreira internacional. Sacrifiquei tudo, muitas vezes mudei de casa, mudei de país. E mudei de mulher. Cheguei a estar casado e a achar que estaria casado para sempre. Mas tudo foi perdendo relevância. Desabituei-me do afecto. Desabituei-me da mulher por quem me tinha apaixonado ainda adolescente, desabituei-me da minha filha, desabituei-me dos meus pais. Seduzir mulheres passou a ser um hobby. Olhar para elas e pensar: 'De quanto tempo vou precisar para a ter nos meus braços?' e o tempo ia sendo cada vez menor porque fui aperfeiçoando a técnica. Por fim trabalhava em Paris onde tinha um apartamento. Fiz coisas de que hoje me arrependo. Excessos. Abusos. De vária ordem. Depois, um dia, sozinho, senti-me mal. A custo, cheguei ao hospital. Fiquei internado. Não recebi visitas. Longe da família, sem querer ligar a amigos, conhecidos ou namoradas. Os médicos mandaram-me parar com os excessos. Mas não foram os médicos. Fui eu. De repente, parecia-me que estava a fazer tudo mal. Despedi-me. Estive uns meses sem trabalhar. Depois resolvi criar esta minha pequena empresa de consultoria em patentes e marcas. E dedicar-me à fotografia. Calhou, um dia, ver numa esplanada uma figura conhecida do mundo da moda. Pedi para fotografá-la. Foi o princípio. Tenho tido sorte. Sinto-me livre. Reaproximei-me dos meus pais, já tão velhos, reaproximei-me da minha filha. É mais velha que vocês. Está grávida. Vou ser avô.'
Meninha ia entrançando o cabelo de Beny. Pôs-lhe uma fita a fazer de gargantilha, pintou-a, Beny parecia nem sentir. Estava alheada. A mente de novo fora do corpo. E foi deixando que as pernas de Filipe se encostassem às suas, aconchegada e encantada. Tinha, outra vez, vontade de chorar, agradecida por Filipe estar ali, contando a sua vida.
Meninha quebrou a emoção do momento: 'E nunca mais teve vontade de fazer neném, não, Filipe?'
Beny zangou-se: 'Que é isso, Meninha...?'
Mas Filipe respondeu, rindo: 'Ah, isso tenho sempre, Meninha. E se estou perto de mulher bonita não posso dizer que a vontade não espreite. Mas estou mais selectivo. Dantes cada mulher era um desafio pois não descansava enquanto não a sentia rendida. Hoje não, hoje quero sentir afecto de verdade. Respondi...?'
'Não leve a mal, Filipe, mas não acredito em si, não. Não leve a mal mas olho pr'a você e vejo alguém que está sempre pronto pr'a facturar'
'Não, Meninha, estou ficando mais velho, já perdi a pressa. Agora quero vagares. Mas, então, agora conte você'
Meninha se furtou: 'Nada pr'a contar, não, Filipe. Vida de pobre não tem história, só míngua. Não gosto de falar. Me faz regressar e eu isso não quero, não. Conta tu, Beny.'
'Vida de pobre não tem história e vida de mulher bonita também não. Não é míngua mas é fartura, que vai dar no mesmo', disse Beny. 'Mas quero continuar a ouvir a tua voz; Filipe. Sinto que a tua voz me abraça. Pode ser?'. Depois, percebeu: 'Era a tua melhor arma de sedução, não era, Filipe? A voz...?'
Filipe disfarçou, fez ar sério, compenetrado e falou como se estivesse a brincar, 'Não sei. Talvez. Mas mais pelo picante que sei pôr nela. Ou o olhar, diziam que o meu também, mas só quando mostro que quero conhecer a intimidade daquelas a quem olho. Ou a língua, o jeito como, quem querer, molho os lábios, deixando perceber que estão a precisar da outros -- de outros lábios, quero eu dizer.'
Benedita e Meninha ouviam-no, fascinadas. Mas logo Filipe fez género: 'Mas isso era dantes. Agora não gosto de me arriscar, agora prefiro ser seduzido. E já estou velho para isso...'
Sem querer, Beny deixou sair: 'Mostra como é, Filipe. Seduz-me. Melhor: seduz às duas, a mim e a Meninha ao mesmo tempo. Tenta ver se a gente cai nos teus braços.'
Mas Meninha, gemendo: 'Ai... Beny... que é isso...? Sou moça comprometida.... Faz isso, não...'
E, então, Beny: 'Chata que é, Meninha, não quer nada. Não ligues, Filipe. Ou, então, espera, para começar, diz-me um poema. E aviso já: é meio caminho andado'
E, então, Filipe, olhando Benedita nos olhos, disse: 'Para ti, wild rose, minha princesa, para que me deixes depois fazer a outra metade do caminho'. Mas depois sentiu-se indelicado e corrigiu, fingindo que sorria: 'Para vocês, para as duas donzelas do meu coração'. Depois acrescentou: 'Assim de repente, acho que é o único de que me lembro...'
'Vida de pobre não tem história e vida de mulher bonita também não. Não é míngua mas é fartura, que vai dar no mesmo', disse Beny. 'Mas quero continuar a ouvir a tua voz; Filipe. Sinto que a tua voz me abraça. Pode ser?'. Depois, percebeu: 'Era a tua melhor arma de sedução, não era, Filipe? A voz...?'
Filipe disfarçou, fez ar sério, compenetrado e falou como se estivesse a brincar, 'Não sei. Talvez. Mas mais pelo picante que sei pôr nela. Ou o olhar, diziam que o meu também, mas só quando mostro que quero conhecer a intimidade daquelas a quem olho. Ou a língua, o jeito como, quem querer, molho os lábios, deixando perceber que estão a precisar da outros -- de outros lábios, quero eu dizer.'
Benedita e Meninha ouviam-no, fascinadas. Mas logo Filipe fez género: 'Mas isso era dantes. Agora não gosto de me arriscar, agora prefiro ser seduzido. E já estou velho para isso...'
Sem querer, Beny deixou sair: 'Mostra como é, Filipe. Seduz-me. Melhor: seduz às duas, a mim e a Meninha ao mesmo tempo. Tenta ver se a gente cai nos teus braços.'
Mas Meninha, gemendo: 'Ai... Beny... que é isso...? Sou moça comprometida.... Faz isso, não...'
E, então, Beny: 'Chata que é, Meninha, não quer nada. Não ligues, Filipe. Ou, então, espera, para começar, diz-me um poema. E aviso já: é meio caminho andado'
E, então, Filipe, olhando Benedita nos olhos, disse: 'Para ti, wild rose, minha princesa, para que me deixes depois fazer a outra metade do caminho'. Mas depois sentiu-se indelicado e corrigiu, fingindo que sorria: 'Para vocês, para as duas donzelas do meu coração'. Depois acrescentou: 'Assim de repente, acho que é o único de que me lembro...'
A drowning swimmers dream
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O episódio que acabaram de ler e que acabei de escrever, o sétimo, vem na sequência de:
Sexto episódio: Noite de juízo
Quinto episódio: A solidão das mulheres bonitas
Quarto episódio: Actos falhados, sentimentos desencontrados
Terceiro episódio: Uma wild rose com red carnations nos seios
Segundo episódio: Beny e Meninha numa tarde especialmente quente
Primeiro episódio: Wild Rose
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