terça-feira, novembro 28, 2017

Eu perguntaria:
somos um corpo com um software exclusivo que é desactivado logo que o corpo se desliga ou somos uma alma transitoriamente alojada num corpo?
(Não sei é se atendem chamadas de outro país)



Há coisas extraordinárias. Esta que se pode ver no vídeo lá mais abaixo, a da Biblioteca Pública de Nova Iorque ter um serviço personalizado em que qualquer pessoa pode telefonar para colocar uma pergunta e haver sempre alguém a responder, é, nos tempos que correm, do além.

Explica uma das funcionárias que talvez sejam pessoas que não têm acesso às tecnologias ou, então, pessoas que gostam de ter alguém que fale com elas.

Acho isto tão bonito, tão bom, tão genuinamente humano que nem sei bem como exprimir-me. A partilha do conhecimento através de um interface humano parece coisa quase ficcional. E, no entanto, até há não muito tempo era assim que as coisas funcionavam: através do contacto humano.


Sou do tempo em que a internet começou a aparecer nas empresas. Ao princípio nem se percebia bem o alcance da coisa. Havia um motor de busca de que eu gostava muito. Chamava-se, se não estou em erro, Altavista. Parecia-me uma fantástica janela aberta para o mundo. E sou do tempo ainda mais antigo em que, para saber coisas fora do meu alcance, subscrevia revistas estrangeiras ou era-me dado conhecimento do índice dos livros novos que chegavam à biblioteca, livros, bem entendido, dentro do meu intervalo de interesses. Já, por essas alturas, eu andava em busca da inteligência artificial, de modelos complexos, de coisas assim. 

Outras vezes, ligava para a bibliotecária, senhora muito low profile, quase parecendo esvaída tanta a sua vasta erudição, e colocava-lhe questões complicadas. Dizia-lhe o que gostava de saber sobre um assunto e pedia que ela espreitasse livros que tratassem disto ou daquilo. Depois ela ligava-me, contava-me sobre as suas pesquisas e enviava-me, por envelope interno que um contínuo distribuía pelos gabinetes, fotocópias de algumas páginas. Com as suas pesquisas, tantas vezes 'ao lado', aprendi também muita coisa pois, mesmo que as fotocópias não contivessem bem aquilo que eu procurava, não raramente introduziam-me noutros mundos.

E eu gostava de falar ao telefone com ela. Na altura, eu tinha um telefone dos modernos. Era cinzento e tinha teclas. Muitas outras pessoas tinham telefones pretos com um marcador de andar à volta, com o dedo preso no buraquinho correspondente ao número.


Enfim. Se eu contar isto aos meus pimentinhas acharão que é mais uma das minhas histórias, daquelas que gostam de me ouvir contar e que invento à medida que vou contando. Mas aconteceu. Numa outra era.

Agora, enquanto escrevo -- e a propósito daquilo de as pessoas ligarem talvez porque gostam de ter alguém com quem falar -- estou a lembrar-me da minha tia, a tia que, por tanto gostar dela, convidei para madrinha de casamento e a quem ela, eu ainda uma miúda, tinha convidado para madrinha da sua filha. Telefonava-lhe todas as sextas-feiras. O meu primo trabalha, claro, e tem uma profissão sem horários. A minha prima vive numa oura cidade. O meu tio tinha-nos abandonado havia pouco,  uma morte súbita que o poupou a maior sofrimento, deixando-nos todos muito tristes e a ela ainda mais. Ela não queria ir para lado nenhum, queria estar em sua casa. Cada vez mais doente, cada vez mais fraca. E todas as sextas feiras, ela cada vez mais débil, me falava da sua falta de forças, me falava da nora que era tão impaciente com o meu primo e de como lhe custava ver aquela rapariga gritar com o 'parvo do teu primo, que aceita que ela fale com ele daquela maneira', me falava dos netos, tão espertos, e da neta bebé da minha prima, filha de uma segunda relação, e quem ela tinha pena de não poder ir ajudar, 'faço ideia aquela casa, os filhos do rapaz, as filhas dela, tanta gente, e mais os cães, e uma casa tão grande e ela que nunca gostou nada das coisas da casa, faço ideia, faço ideia'. E, sem forças, toda se emocionava por não poder meter-se na camioneta e ir ajudar a filha. Eu conversava com ela de coração partido. Sentia que as forças estavam a abandoná-la. Comecei a convencê-la a ir para um lugar onde tivesse assistência. A minha mãe, com alguma ginástica e aflita por deixar o meu pai durante tanto tempo, conseguiu ir vê-la nesses últimos dias. Veio de lá, cheia de lágrimas, 'Coitadinha... Já não dura muito... Coitadinha... Para andar, já só dobrada e encostada aos móveis... Já não dura muito'. E não. Morreu pouco depois.


E eu, durante muito tempo, chegava a sexta-feira à tarde e sentia a falta de falar com ela. Sempre que eu me despedia, ela dizia: 'adeus, minha querida, obrigada por ligares sempre'. E tratava-me pelo meu diminutivo. Ela dizia que ficava à espera que eu ligasse e eu ficava à espera de serem horas de lhe ligar. Já foi há algum tempo mas continuo a lembrar-me disso. Sinto a sua falta. Era tão alegre, tão moderna, tão para a frente, as tuas palavras tão humanas. Tão consciente da sua finitude. Tão corajosa..

E isto que estou a dizer não tem a ver com o google humano ou com a função social dos bibliotecários. Foi assunto que chegou enquanto eu escrevia. Tem a ver apenas com as saudades que sinto de uma pessoa de bem, que sempre conheci sorridente, boa companhia, muito amiga. Gostava de me sentar ao fim da tarde das sextas-feiras, marcar o seu número e ficar ali a ficar com ela. Ainda não apaguei dos meus contactos no telemóvel o número de telefone lá de casa. Há pessoas de quem me custa pensar que desapareceram para sempre. Preferia acreditar que a alma delas vive agora num outro corpo qualquer. Poderia até ser no corpo de um animal. Ou numa árvore.

Talvez um dia ligue para a Biblioteca e pergunte: 'Por onde anda agora a alma da minha tia?' ou, então, 'As palavras que troquei com a minha tia naquelas tardes de sexta-feira desapareceram no imenso cemitério das palavras mortas, ou andam ainda por aí, acompanhando-me ao longo desta minha caminhada?'

Se um dia o fizer, o que será que a Rosa Caballero me dirá...?


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O Google Humano da Biblioteca de Nova Iorque



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Já agora, se me permitem, algumas outras bibliotecas maravilhosas

(entre as quais a que acima se mostra)


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E mais livros, desta vez livros proibidos, uma instalação também extraordinária. Na Alemanha.


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Junto ao texto, as imagens mostram esculturas digitais de Chad Knight

Música de Philip Glass para harmónica de vidro

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