Passa da meia-noite e meia a acabo de chegar à sala. Dia longo, longo. Depois de um dia normal, atravessar a cidade à hora de ponta, sair de Lisboa entre um mar de carros.
Quando chegamos já é noitinha. Um lusco-fusco, quase noite. Entro em casa e logo saio. Ando quase às escuras. Entre o escuro e as silhuetas dos arbustos, procuro o banco do canto. Espreito para baixo. Não o vejo. Aproximo-me. Não. Não está lá. Ao entrar em casa, vinha o meu marido a procurar-me: 'Onde fostes?'. Confesso: 'Fui ver se o gatinho estava debaixo do banco. Não estava'. Comenta: 'És maluca'.
Entretanto, chega o vizinho da ponta da rua. Combinamos com ele. Entregamos-lhe o molho de chaves da casa. A ver se amanhã lá vai o canalizador. Provavelmente temos mesmo que avançar para uma canalização nova. Quando ele se vai embora, arrumo umas coisas, esvazio os armários das casas de banho. Não sei se vão mexer lá, ainda não percebi o que é que tem que ser novo. Não sei se é mesmo tudo, se apenas os tubos principais mas, pelo sim, pelo não, tiro tudo de dentro dos armários. O meu marido não acha bem. Diz que, se calhar, não vai ser preciso, não quer estar a ter este trabalho e, por isso, acabo por ser eu a tirar quase tudo. Diz que está com fome, que vai às uvas. Eu abasteci-me antes, comi umas amêndoas mas, se ele trouxer umas uvinhas, também irão bem. Penso que sem uma lanterna não o conseguirá. Mas se calhar levou-a. Apareceu com um grande cacho de uvas negras. E diz: 'Então não o viste? Está em cima do banco'. Pois. De facto sou um bocado míope e quase não se vê nada, apesar do céu estar estrelado. Mas a questão é que olhei para baixo, onde ele costuma pôr-se. Toda contente, fui logo lá. E lá estava. Ele, num cantinho. E então vejo um vulto mexer-se no outro canto, junto à rama do pinheiro. Era a mamã gata. Levanta-se, fica de pé em cima do banco, a olhar. O gatinho também se levanta, fica expectante. Aproximo-me, digo baixinho: 'Gatinhos lindos, gatinhos lindos, bschhhh, bschhhh'. Os dois vultos brancos, um grande e um pequeno, sossegam, aninham-se, cada um em seu canto.
Depois volto para casa. Penso. Não poderia separá-los e trazer o gatinho para longe da mãe, privá-lo daquela liberdade boa.
Venho para casa e penso como são felizes eles, ali, tranquilos, livres. Não o quero igual a Luhu, o gato que dizem parecer o mais triste do mundo.
Pelo caminho, paramos num restaurante. Um restaurante de aldeia. Pouca gente, o dono muito atencioso. Comida boa, caseirinha, apuradinha, cheirosa. Como à vontade, sem me lembrar da dieta, feliz da vida. Depois, já cheia, cheia, ainda uma fatia de bolo de chocolate. Mal me distraio, esqueço-me de me portar bem. Uma maçada isto do bom comportamento ser em mim uma coisa pouco natural.
Agora, chegada de novo à cidade, fiz um chá de lúcia-lima. Sabe-me bem. Não é chá. É infusão. Não interessa. É bom. Nunca ponho açúcar. Nem nos chás ou infusões nem no café. O sabor puro. A ver se me acelera a digestão. E pode ser que consiga derreter as calorias a mais. Para perder o quilo a mais que ainda tenho a enfeitar-me a figura é um castigo. Em contrapartida, ganhar mais um ou dois é piece of cake. Não é justo.
Praticamente não tive férias e, no entanto, parece que sinto saudades delas. Gostaria de lá ter podido ficar. Lembro-me agora. Quando estava a aproximar-me do banco, da primeira vez, quando não vi os gatos, ao passar ao pé da azinheira, um pesado bater de asas. Um pássaro grande. Já não me assusto. Antes sim, cada susto... Agora sinto-me cada vez mais bicho. Na nossa ausência, devem estar na maior paz, lá entre eles, gatos, pássaros, usando todo o espaço. Ao ouvirem-nos durante a semana, chegando à noite sem aviso, devem sentir uma grande estranheza.
Depois, no carro, ouvimos do violento sismo no México. Nova tragédia. Depois as beligerantes palavras de Trump em resposta ao outro maluco, ao rocket man. Depois ameaças ao Irão. O Irão nuclear, outra ameaça. E eu penso que esta gente é tão desesperantemente doida. Não basta deus estar pelos cabelos, deixando que aconteçam tufões, vendavais, monções carregadas de água, seca extrema, tremores de terra, ameaças de tsunamis, também agora dois perigosos malucos com o dedo quente para carregarem no respectivo botão fatal. Tento dormir, não quero saber deste mundo desorbitado. Mas não consegui.
Sabendo que tinha a viagem, à hora de almoço fui numa fugida, coisa apressada, ver se arranjava leitura breve para ler no carro. Tinha-me esquecido que os dias estão pequenos. Tão pequenos. Não tarda muda a hora e, então, os dias, à hora do lanche, vão ficar ainda mais tímidos, toldando-se ainda antes de ser noite. Mas o livrinho parece tão bom, tão feito com carinho e cuidado: 'O caçador de histórias ' de Eduado Galeano. Gosto de saber que os escritores se deixam estar a preparar com desvelo a sua obra até que alguém os impeça que continuem ou até que morram. Sinto que tenho nas minhas mãos a preciosidade que alguém fez chegar até mim.
Só folheei. Não faz mal. Tenho tempo.
O pior é que não tenho tempo. E, além disso, hoje tenho uma dor de garganta, aqui num dos lados. Algum dos miúdos me deve ter pegado. Esta segunda-feira estive com eles todos ao fim do dia. Andei a distribuir uvas, cuecas e meias. E beijinhos. Na volta devo ter recebido um dos seus variados vírus.
E estou cansada e com sono. Já adormeci algumas vezes. Daqui a nada são duas da manhã e, que eu tenha dado por isso, ainda não escrevi nada. Pelo menos que se aproveite.
Daqui a nada é outro dia. Começo o dia com uma reunião. Não posso ir para lá dormir até porque fui eu que convoquei. Há que ter o sentido das responsabilidades
Se virem mais gralhas do que o usual, por favor, relevem. Ou avisem-me. Please.
E nada mais. Só isto. E vontade de estar bem, tranquila, a pensar em coisas boas, a recordar aqueles todos de quem gosto. Não consigo estar tão perto de todos quanto devia, ouço queixas, sei que falto muito a quem me quer bem. Mas não sei como. A minha vida é isto. Não dá para mais. Só mesmo para o que vai dando.
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As duas últimas fotos provêm do National Geographic
Os poemas de Fernando Pessoa (respectivamente Gato que brincas na rua e Não sei quantas almas tenho) são lidos por José-António Moreira
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Kristina Hammarström e Emanuela Galli com a Orchestra of Patras interpretam
Caro! Bella! Più amabile beltà de Handel
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Um dia muito feliz a todos quantos estão aí, desse lado, a ouvir como respiro.
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