Tento lembrar-me e, menina feliz, nada me ocorre. Palavras que, quando eu era criança, alguém me tenha dito e que tenham doído a ponto de nunca mais as ter esquecido. Mesmo adolescente. Mesmo adulta. Não me lembro de nada. No entanto, sabido é que tudo se me varre, especialmente coisas más. Admito que alguém, alguma vez, me tenha ofendido ou tentado denegrir-me. Contudo, provavelmente, na altura, devo ter pensado que palavras de burro não chegam ao céu ou que, quem assim me tratou, devia ser algum palerma encartado ou coisa do género e, portanto, na hora, a coisa logo se esvaneceu. A verdade é que não me lembro de nada. Não sei se é mecanismo de defesa, ou seja, se é uma forma inconsciente e automática de limpar emoções ou pensamentos tóxicos dentro de mim ou se sou simplesmente desmemoriada, vulgo cabeça de alho chocho.
No entanto, conheço pessoas que guardam mágoas de anos, recordando com tristeza palavras que alguém, em criança, lhes dirigiu. Dizem: 'Ficou-me gravado'. ou 'Ainda me lembro como se fosse hoje'.
Tenho estado aqui a pensar em gente com quem, ao longo de anos, tive alguns desaguisados. Por exemplo, o que já antes aqui contei, quando, sendo eu directora, o administrador de quem dependia me disse que, se eu não conseguia concordar com ele e acatar as suas orientações, sabia bem o que deveria fazer. Dessa não me esqueço. Mas também não me esqueço da minha resposta: 'Mais depressa vai um administrador ao ar que um director.' E, na verdade, pouco depois, tiraram-lhe o meu pelouro e, não muito depois, foi destituído. E eu continuei, tranquilamente. Portanto. Ou seja, as palavras dele não me perturbaram, apenas me deram pica e, no conjunto, recordo a conversa com vontade de rir.
Agora mesmo, ao jantar, o meu marido lembrou outro caso, uma situação com o nosso vizinho Rodrigo. Conto. O que ele disse também é inesquecível.
Terá uns trinta e tais, talvez já uns quarenta, consultor, boa figura, bem vestido, bem falante. Na altura vivia com a primeira mulher e com a filha. Uma conversa sempre extraordinária, mesmo bem falante. Tinha feito umas obras aparatosas no andar e, da rua, via-se a casa sempre super-iluminada, grandes janelas sem cortinas deixando ver o interior. Era, então, o responsável pela gestão do condomínio. Já ia no segundo ano. Entretanto, a mulher deixou-o e ele ficou com a casa. Entrou numa fase de festas e festanças. Rapou o cabelo, deixou crescer a barba. Parecia um consultor-taliban. E, com frequência, até às quinhentas, a casa cheia de gente, não sei se dançavam, se quê. Se calhava chegarmos tarde a casa, lá se via aquele ajuntamento aparentemente numa grande farra. Nada a ver. Não tínhamos nada a ver com aqueles convívios. Estou apenas a contextualizar. A questão é que não fazia as contas do condomínio. Não recebia as mensalidades de parte dos condóminos que, por ele não ter antes passado recibos, tinham deixado de pagar. Connosco também aconteceu isso. E já havia também queixas de atrasos em alguns pagamentos, às senhoras da limpeza, por exemplo. E, como não tinha contas, não podia passar o testemunho já que ninguém queria pegar numas contas por fazer, uma bagunça: não se sabia quem e quanto devia ou a quem é que o condomínio devia. Com aquela conversa dele, sempre charmoso, ia empurrando com a barriga: que na semana seguinte apresentava as contas, depois que não tinha conseguido, que no mês seguinte era de certeza, e assim sucessivamente.
Um dia subi com ele no elevador e chamei-lhe, de novo, a atenção. Por uma vez foi honesto e, cabisbaixo, confessou que tinha perdido o fio à meada, que não conseguiria fechar as contas. Disse-lhe: 'Isso já eu percebi há muito tempo. Mas alguma coisa vai ter que fazer, senão isto apenas se agrava. Organize minimamente os papéis, peça ajuda. Porque é que antes ainda não me tinha dito isso?'. Ficou em silêncio e depois disse esta coisa surreal: 'Porque tenho medo de si'.
Bem. Fiquei estupefacta. Só fui capaz de lhe dizer: 'Essa é boa. Coisa mais disparatada. Você não é bom da cabeça.' E ele entrou em casa dele e eu segui viagem no elevador.
Quando cheguei a casa, contei ao meu marido. Fartou-se de rir. Disse: 'É para que vejas o que eu sofro contigo. Até o Rodrigo, que pouco te vê, tem medo de ti...'
O bom do Rodrigo, entretanto, arranjou logo outra mulher e já tem mais um filho. Quando me vê, baixa a cabeça e cumprimenta-me com deferência. O meu marido diz em surdina: 'Coitado, não conseguiu fugir a tempo, teve que te cumprimentar, mas olha para ele, coitado, aflito..., vê-se bem o medo que tem de ti...'
Mas pronto. Vem isto a propósito do vídeo abaixo. Infelizmente, acho que não há versão legendada até porque o vídeo foi publicado ontem. É um vídeo de sensibilização para que não sejamos agressivos, maus, ofensivos para os outros, em especial com crianças. As palavras que nos fazem mal. Não usar palavras que magoem. Não magoar os outros tal como não queremos que nos magoem a nós. Palavras que ficam gravadas: 'Não vales nada', por exemplo. Nunca dizer nada a uma criança que a faça sofrer. Nunca, nunca, nunca. As palavras podem ferir mais do que uma palmada. Nunca dizer a uma criança: 'Já não gosto de ti' ou 'gosto mais do teu irmão do que de ti' ou 'que mal fiz eu para merecer ter um filho como tu?'. Nunca, nunca, nunca.
Contra a violência verbal.
Não dizer às nossas crianças (nem a ninguém) palavras que fazem mal
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As imagens que intercalei no texto mostram trabalhos feitos pelo tatuador turco Alican Gorgu (AKA PigmentNinja) que tatua imagens que representam fotografias de família, em especial dos próprios quando crianças.
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