Há alturas em que vagueio por entre leituras, sentido-me bem, apreciando o sabor das palavras, a elegância da escrita, contente por ter a sorte de gostar de livros.
Mas há outras em que, talvez porque mais predisposta, talvez por afortunadas coincidências, a experiência de ler é mais do que isso: é sinónimo de pura felicidade. Leio e sinto um envolvimento profundo que me transporta para aquele espaço indefinível em que a nossa matéria se dilui na felicidade de viver o momento.
De vez em quando, se o meu destino inclui a Gulbenkian no percurso, arranjo maneira de fazer coincidir um almoço rápido com uma ida à livraria. Mil vezes que pelo parque ou pela livraria eu ande, mil vezes me encanto como se fosse prazer inaugural. Desta vez o que trouxe de lá, para além da serenidade que o passeio por aqueles recantos frondosos sempre me proporciona, foi o Colóquio de Letras, Setembro/Dezembro 2017.
Esta do Colóquio de Letras foi tema durante anos. Eu vinha de um namoro erudito. O meu namorado era todo artes e letras e eu, sendo naturalmente interessada por estes domínios, vivia imersa em informação, em revistas, livros, discos. Sendo ele pessoa muito dada à literatura, o Colóquio de Letras era uma lufada de arte, saber e ar fresco que consumia com avidez e do qual também me tornei devota. Ao começar a namorar o que viria a ser meu marido, todo ele de áreas mais exactas e concretas, falei-lhe uma vez no Colóquio e, para meu espanto, descobri que era coisa que ele desconhecia. Fiquei escandalizada. E ele deve ter achado o meu escândalo uma coisa disparatada pois, quando queria ridicularizar algum intelectual de pacotilha, acrescentava logo, 'ah... e não deve perder um Colóquio de Letras...'. Não me deixei abalar. Troquei de namorado, nada de mais, mas ao Colóquio de Letras mantive-me fiel.
No Colóquio gosto de tudo. A começar é o objecto em si. Agrada-me o design, a paginação, a qualidade do papel, o peso (é pesado, um compacto de luxo), o cheiro a tintas quando é novo. E gosto da selecção de temas, gosto do que lá se escreve, gosto do cuidado da feitura, gosto das imagens.
Mas este número é, de facto, especial: é um luxo.
António Ramos Rosa e Herberto Helder. A poesia de ambos, a amizade que os unia, a correspondência trocada. A imagem das cartas, a letra deles, a insegurança de HH, o conforto que procurava junto do amigo, a palavra certa de ARR -- tão bom ler, ver, ter a poesia deles assim materializada.
E os poemas de ambos, poemas maiores, vozes a um tempo vindas das entranhas da terra, das entranhas da alma, da seiva das árvores, dos cavalos quando correm na noite, da seda das pétalas das rosas, do sangue das mulheres, da luz, das trevas, da imaterialidade do amor... O prazer de ter uma edição destas nas mãos, folheá-la, palpá-la, fechar os olhos e, ao voltar a abri-los, aquelas palavras ainda ali estarem, disponíveis, belíssimas.
Para acescentar ainda mais espessura à 'alquimia verbal da escrita de Herberto e à voz inicial de Ramos Rosa', as imagens de 'algumas peças da obra ao negro de Rui Chafes -- tal como Nuno Júdice o refere no Editorial.
Entretanto, este domingo, dia muito tranquilo: caminhada à beira rio, fotografias, almoço no cantonês, a aragem que faz dançar suavemente o arvoredo, as gaivotas, os veleiros, as cores doces deste fim de verão que já sabe a outono.
E estou aqui a escrever e com vontade de parar já para ir ler o livro. E há livros em que retomo no exacto ponto em que os deixei porque cada palavra conta -- e não são muitos autores com quem isso acontece. Neste sim. Neste livro não poderei perder palavra. Se calhar, quando a ele voltar, vou até reler a última página para ter a certeza que a cerzidura na leitura fica perfeita porque este livro não é um livro qualquer. Vou no princípio mas já sinto que é raro. Um luxo.
E, de tarde, um outro livro. Estou no princípio. Mesmo no princípio. E, no entanto, já lá estou dentro. Daqueles livros, pura literatura, em que as palavras nos levam pela mão. Bem sei, como no outro dia li a Javier Marias, que uma tradução é uma reescrita, a toada é outra porque a língua é outra, as subtilezas das palavras são, certamente, outras. Uma reinterpretação do original. Mas é uma tradução o que estou a ler (a cargo de Rui Lagartinho e Sofia Castro Rodrigues). Se calhar, se estivesse a ler o original, o meu maravilhamento seria ainda maior. Mas é em português que leio e é em português que falo do prazer que o livro, desde já, está a trazer-me. Chama-se Pedro Páramo e é de Juan Rulfo que o publicou em 1955.
Ler sentindo o toque das palavras |
E estou aqui a escrever e com vontade de parar já para ir ler o livro. E há livros em que retomo no exacto ponto em que os deixei porque cada palavra conta -- e não são muitos autores com quem isso acontece. Neste sim. Neste livro não poderei perder palavra. Se calhar, quando a ele voltar, vou até reler a última página para ter a certeza que a cerzidura na leitura fica perfeita porque este livro não é um livro qualquer. Vou no princípio mas já sinto que é raro. Um luxo.
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Excertos de Pedro Páramo lidos por Juan Rulfo
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E, porque este post é também deles, poemas de António Ramos Rosa e de Herberto Helder
(lidos por José-António Moreira)
O teu rosto
O amor em visita
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Fotografias feitas este domingo
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Abaixo fala-se de uma pessoa pouco recomendável pelo que deverão avaliar bem se é de vossa conveniência perturbar a alegria que as gaivotas vos estão a enviar
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