domingo, agosto 20, 2017

Fotografar
-- desenhar com luz e contraste --





Este sábado foi, então, Dia da Fotografia. Não sabia que havia tal dia mas, afinal, porque não haveria de haver se há um dia para cada coisa?


Não sei se as rádios e as televisões deram a notícia. Se deram, certamente ficaremos  a saber que, para além de metade da população ser diabética, dois terços terem problemas mentais, três quartos padecerem de alergias, setenta por cento terem problemas de pele, e etc (tudo coisas que ficamos a saber nos respectivos dias), também oito nonos da população se dedica à prática da fotografia. Ou seja, há forte probabilidade de que algumas pessoas sejam simultaneamente asmáticas, diabéticas, depressivas, autistas, canhotas, carecas... e fotógrafas. Não é, felizmente e tanto quanto sei, o meu caso. Acho que não sou nada disto. Contudo, gosto muito de fotografar.

O meu primeiro contacto com a fotografia foi através de uma máquina que o meu pai tinha. Uma Kodak, um dos tais casos citados quando se refere o caso de marcas que têm tal relevância que passam a dar o nome ao produto. Fazia muitas fotografias, ele. Gosto especialmente de ver as fotografias de quando eram jovens, um grande grupo de amigos que passeavam juntos. Tinham um ar moderno e elegante. Depois, quando nasci, passou a fotografar-me e a ideia que tenho é que passou a ser esse o seu único foco de atenção a nível de fotografias. Provavelmente também porque, tendo quase todos eles arranjado família, deixaram de passear tanto em conjunto e desapareceu a ocasião para aquelas fotografias. Não sei. 

Assim que tive voto na matéria quis eu ter uma máquina.

Quando íamos de excursão, já era eu que levava máquina e fotografava os meus colegas. Estou a lembrar-me de nós na Serra da Estrela. O meu namoradinho da altura fotografou-me. Ele era o mais maluco e talvez por isso eu gostasse tanto dele. Eu tinha uma camisola encarnada tricotada pela minha mãe e um gorro igual e os cabelos compridos espalhavam-se pelos ombros e pareciam iluminados por luz que só ali se via já que o resto da paisagem era branca. E os meus colegas, que fotografei, aparecem abraçados, a rir, uns a fazerem cair os outros. Andávamos em pequenos trenós, brincávamos a escorregar, caíamos, ríamos. É engraçado como se vê pelos rostos que fixei no tempo quem haveria de vir a transformar-se em adulto sisudo e quem haveria de permanecer divertido e jovial.

Gostava de ter fotografias de quando fomos ao Gerês mas, nessa altura, já era namoro mais a sério, não me sobrou motivação para fazer reportagens. Só tinha olhos para um mas estava a ser disputada por outro e, portanto, foi uma excursão emocionalmente intensa. À chegada, franca como sempre fui, contei aos meus pais algumas dessas peripécias e o meu pai ia-se passando comigo e com a minha mãe, já que tinha sido uma guerra para me deixar ir, ele querendo preservar-me dessas 'cenas' e a minha mãe não querendo causar-me o desgosto de me impedir de ir. Nem uma fotografia desse passeio tão bonito e tão marcante.

Mais tarde, já casada, um dia o meu sogro apareceu-nos com uma máquina extraordinária. Tinha ido lá ao escritório alguém com uma máquina russa e ele lembrou-se de a comprar para nós. Já não me lembro exactamente das circunstâncias. Ele trabalhava na Baixa e a ideia que tenho é que, volta e meia, gente dos navios que ali atracavam vendia coisas do género. Mas a esta distância já não sei dizer mais que isto. Era uma Zenit. Tinha uns truques e fazia umas belas fotos. Pesava que se fartava. Foi uma descoberta. Passei a não poder passar sem fotografar.

Quando nasceram os meus filhos, foi uma festa. Fotografias, diapositivos (agora que escrevi diapositivos não me lembro se era este o nome) aos milhares. Mas não os fotografava apenas a eles. Na realidade, o fascínio pela atenção aos pormenores ou a uma forma diferente de ver foi alargando os meus interesses. Para onde quer que fossemos, eu ia impreterivelmente com a máquina. Nessa altura ainda a fotografia não era digital. Tínhamos que comprar rolos, escolher a velocidade, a definição. Depois tínhamos que os mandar revelar.

Depois vieram outras máquinas, as lentes compradas à parte, criteriosamente escolhidas pelo meu marido. Havia uma loja em Alvalade, íamos lá muito. Tenho ideia que ele conhecia o dono, discutiam modelos, mandavam vir de fora. E era lá que deixávamos os slides para revelar -- iam para a Agfa na Alemanha e depois recebíamo-los em casa, por correio.

Mais tarde passámos a revelá-las em casa. Equipamento específico que ainda está no móvel da despensa. Líquidos reveladores, fixadores. Papel próprio para isso. Pinças com pontas de borracha. A câmara escura pela noite adentro. Esperávamos que os miúdos adormecessem. Havia uma lâmpada encarnada que não danificava o nosso trabalho. Era um fascínio ainda maior. O cheiro dos líquidos, a magia das imagens a aparecerem no papel dentro dos tabuleiros, com o líquido revelador.

Eu gostava e gosto de fotografar o mundo, o meu marido gosta de me fotografar a mim. A diferença é que o mundo está sempre dsponível para se deixar fotografar enquanto eu nem sempre o estou e, portanto, eu nunca tenho razão de queixa enquanto ele tem. Mas, enfim, a conversa agora é sobre mim enquanto agente fotografador e não enquanto objecto fotografado.

O que gosto mais de fotografar é gente. Gosto mesmo muito. Mas, porque a legislação não me é clara e porque, para ser objectivamente permitido, deveria ter a autorização expressa e, como é bom de ver, nem sempre faz sentido pedir autorização porque o momento se perderia e porque, sobretudo, as pessoas haveriam de me mandar uma grande volta, opto por não divulgar fotografias em que apareçam pessoas que possam ser facilmente identificadas.

Já tive um blog de fotografia de rua. Chamava-se Street Photo & Co., nome dado pelo meu marido. Ainda cheguei a publicar cerca de 300 posts com outras tantas fotografias e fazia-o sempre com grande prazer; mas depois temi ainda arranjar sarilhos e retirei-o do ar. Estive agora a revê-lo e devo aqui confessar que tenho pena de o ter escondido pois acho que é uma galeria do dia a dia português com alguma piada e, na verdade, gostaria de partilhá-lo convosco. Mas paciência. Nem sempre se pode fazer aquilo de que se gosta.



Assim, limito-me a mostrar-vos motivos mais inócuos. Recantos da minha casa in heaven, o livro que estou a ler, o brinquedo que os meninos deixaram sobre a mesa de azulejos, ou a natureza que tenta dominar-nos, ou as vicejantes uvas que estão a ficar maduras, o escultural tronco das árvores, a folhagem seca e a caruma que fazem uma manta que me encanta. Coisas assim, simples.

Ou os veleiros, o Tejo, Lisboa a bela, o deslizar da luz sobre a cidade, as águas picadas que dão ainda mais vida ao magnífico rio.


Ou o vulto da mulher que, em vez de contemplar passivamente a beleza do entardecer que dourava as casas, os barcos e o céu, se fotografava a si própria nas mais sugestivas poses, sorrindo, arqueando-se ou esticando-se, uma coreografia ridente para se fixar a ela própria na bela paisagem.


Ou a quietude azul do mar ao fim do dia quando, na sexta-feira, para lá fomos depois do trabalho encontrando o nosso grupinho de alegres veraneantes, todos ainda com o sal nos cabelos e leveza bem disposta nas vestimentos e nos gestos.


Ou a alegria do cão que entrava e saía da água, brincando, alegre como uma criança, sem saber que, lá em cima uma mulher o olhava com alguma inveja.


Ou a queda do sol no horizonte, pronto a mergulhar no fundo do mar, e a gaivota em largas danças num vasto plateau com um pano de cena tão espectacular.


Ou o voo suave das gaivotas quando o sol se tinha já posto e o forte do Bugio e o lado de lá eram apenas uma vaga sugestão, a noite quase a tombar sobre a praia.


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11 Artistas falam de fotografia



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Da Wikipedia:

Fotografia (do grego φως [fós] ("luz"), e γραφις [grafis] ("estilo", "pincel") ou γραφη grafê, e significa "desenhar com luz e contraste").


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E tenham, meus Caros Leitores, um feliz dia de domingo.

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