Às pessoas que mais gostam de petiscar do que de comer grandes pratadas há quem chame piscos. Os piscos são pequenos pássaros e, como qualquer pássaro, ora comem uma coisa aqui, ora outra ali, nunca muito da mesma coisa ou de seguida.
Com os livros, tal como venho confessando, ultimamente eu sou um pisco. Petisco. O tempo livre não é muito, a exigência é cada vez maior, a impaciência domina, o ter que ler um livro de uma ponta a outra deixou de ser uma obrigação para ser quase uma excepção. Abro, leio, se gosto e tenho tempo, continuo, se calhar no dia seguinte pego noutro, depois posso voltar ao anterior e ler outra parte não sequencial. O caso é que também cada vez mais leio apontamentos, diários, ensaios, crónicas, cartas -- ou seja, livros em que o respeito pela sequência não é mandatório. A ficção vai perdendo relevância na minha lista de leituras. Histórias sem história, argumentos frouxos -- ou de uma violência gratuita ou provocações mal engendradas ou diálogos mal cerzidos ou um apelo simplista à emoção -- tudo me causa uma aversão fatal.
Contudo, de quando em vez, um romance cintila nas minhas mãos. Nessas alturas, o prazer visceral pela leitura toma conta de mim e fico presa e, aí, não salto páginas, nem sequer linhas. E, se tenho que parar, não vejo a hora de retomar.
Antes de ir de férias, um colega meu veio mostrar-me o que ia levar para ler, uns que tinha ouvido elogiar e outros de um autor que lhe tinha sido muito recomendado por outro colega nosso. Sabendo-me amante de literatura veio aferir. Nunca tinha lido nada daquilo nem tenciono ler. Não lhe disse desta forma mas penso que ele percebeu que nada daquilo faz o meu género. Ainda tentou: 'Best sellers. Parece que não se fala de outra coisa. E este, um autor premiado'. Consenti: 'Talvez. Se calhar são bons. Eu é que ando pela margem'. Tenho para mim que os meus colegas chegam a duvidar que eu seja mesmo amiga de ler já que nunca me apanharam conhecedora de livros que toda a gente lê. Pelo contrário, se digo o que tenho em mãos, é sempre ave rara, nunca ninguém de tal ouviu falar. Se fosse dada a tremores de alma, quase me envergonharia de nunca poder dar provas de que leio livros de verdade.
Se circulo pelas livrarias, evito parte das estantes como se a simples proximidade me pudesse causar alergia. Depois, mesmo naquelas onde pode aparecer coisa que interesse, espreito com alguma aversão grande parte dos que aparecem destacados. Títulos muito intrusivos, imagens de gosto duvidoso têm em mim o efeito de um repelente. Muitas vezes, se alguma coisa no título ou na capa me faz admitir a hipótese, começo por espreitar o tradutor. Tenho para mim que tradutor que se preze não aceita qualquer trabalho, há-de ser criterioso, E depois abro, leio ao acaso. Se calha ler alguma frase que me parece deselegante, vulgar, insípida, logo ali o deixo, imediatamente desinteressada. Depois há os que passam neste meu crivo sui generis. A esses venho sempre com vontade de lhes poder dedicar atenção de verdade, imaginando os momentos de alegria que irão proporcionar-me.
Com curiosidade trouxe este livro de cujo autor nunca antes ouvira falar. Continha referência a montanhas, a silêncios, a grandes espaços. A capa e a paginação agradaram-me. A fotografia do jovem autor, sentado junto a uma casa de pedra, também me agradou. São estas coisas que não se explicam, meras intuições.
Com curiosidade trouxe este livro de cujo autor nunca antes ouvira falar. Continha referência a montanhas, a silêncios, a grandes espaços. A capa e a paginação agradaram-me. A fotografia do jovem autor, sentado junto a uma casa de pedra, também me agradou. São estas coisas que não se explicam, meras intuições.
A simplicidade da vida no campo agrada-me. Sendo pessoa de cidade, vivo feliz quando estou no campo. Entregue a tarefas manuais, ouvindo os pássaros, espiando o mato a ver se descubro coelhos, podando árvores ou contemplando-as como quem contempla belos seres vivos, obras de arte, milagres da natureza -- eu nem dou pelo passar do tempo, como se a sua passagem fosse toda e só suavidade.
Hoje de tarde, estava a ler o livro, levantou-se um vendaval. As árvores numa dança ruidosa, folhas pelos ares, um som que parecia o rugido do mar. O céu toldou-se, parecia que ia chover. Fomos pressurosamente à rua, apanhar a roupa antes que se molhasse, recolher a cesta de pinhas. Tudo estava subitamente revolto, a quietude dera lugar a um estranho alvoroço. E, no entanto, até disso eu gostei. Foi como se a paz tivesse mostrado uma outra sua face.
Sempre que posso, isto é, sempre que estamos apenas os dois, faço uma caminhada. Dou várias voltas completas pelas extremas do terreno, pelos caminhos que serpenteiam entre as árvores. Por fim já estou cansada, transpirada, mas continuo: o pinheiro alto, a curva junto aos cedros, o eucalipto grande, o mato de alecrim, as figueiras, a escada de pedra, as parreiras, o abrigo, a volta das azinheiras, o caminho coberto pelos cedros, o corredor comprido dos pinheiros mansos, o campo aberto, a mesa de pedra com os bancos, a moita alta da madressilva, a cabana de madeira, a macieira, o banco azul ao pé dos cavalos azuis, a casinha verde, os loendros, os tamarindos, a descida onde os gatinhos vão procurar a comida, a curva lá ao canto.... E assim continuo. Penso: quando esta volta acabar, páro. Mas, quando acaba, inicio nova volta e prossigo a caminhada. Há qualquer coisa de viciante no prazer que se tem quando se caminha na natureza. E à noite? O milagre de mil estrelas cintilando no distante além que nos sobrevoa? E a lua? Maravilhosa lua. Misteriosa, toda ela metamorfoses. Logo vou a correr buscar a máquina, fotografo-a, agora em crescendo, promissora, toda brilhos e seduções. A noite no campo tem mil fascínios e esta lua cativa-me como se estivesse ali só para me tentar. Fará contemplá-la em plena montanha, só silêncio e secretos murmúrios. Fará.
Não conheço o prazer de caminhar montanha adentro mas imagino que seja mil vezes maior do que o que sinto quando caminho in heaven: será talvez um misto de aventura, de descoberta, de fascínio, um prazer a que sempre e sempre se há-de querer voltar. [Existe um lugar na blogosfera onde se pressente o que deve ter de irresistível a magia da montanha. É dos blogs que sigo com mais interesse. Bate o vento sopra a chuva.]
Não sei se porque o tema do livro se centra no prazer de percorrer a montanha ou se, para além disso, também pela qualidade da escrita, pela simplicidade onde transparece uma forma genuína de comunicar, pelo equilíbrio entre a história narrada e a elegância da narrativa, a verdade é que o livro que estou a ler é daqueles que me faz pensar: 'isto é literatura'.
O autor é Paolo Cognetti e o livro é 'As oito montanhas'. Vou na página 160 e já espreitei o final. E já me aconteceu o que há séculos não me acontecia: emocionar-me a ponto de ficar com lágrimas nos olhos. E isto com uma escrita lisa, desadjectivada, sem recursos a artifícios estilísticos ou a palavreado elaborado.
Entretanto, já fui pôr-me à procura do autor no YouTube e já vi que tem um blog que, a partir de hoje, integra a galeria lateral de 'Frescos e Bons' aí à direita (Capitano mio Capitano). Se por um lado, é escrito numa das mais belas línguas, o italiano, por outro, para quem não a conheça -- como é o meu caso -- é uma frustração. Mas não interessa, percebe-se o que der para perceber e, do que não se perceber, passa-se à frente. Pode tentar-se o tradutor do google mas não recomendo pois é um mais um triturador do que um tradutor.
Entrevista a Paolo Cognetti: l'esplorazione della montagna, un'emozione fortissima.
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As imagens que escolhi mostram os Alpes, excepto parte do meu percurso enquanto por aqui caminho e, claro, excepto a lua a caminhar para crescente, aqui in heaven.
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Ciao!
E uma boa semana a todos, a começar já por esta segunda-feira.
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E uma boa semana a todos, a começar já por esta segunda-feira.
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