quarta-feira, julho 05, 2017

Lu, a mulher infiel





Vários dias depois, Lu completou as suas memórias. Mentalmente dizia em francês ‘mes mémoires’ e sorria. Escreveu sobre tudo o que se lembrou e foi apimentando a escrita com descrições circunstanciadas do que, também mentalmente e também sorrindo, designava por ‘sem-vergonhices’. Quando as releu, uma vez mais não sentiu a emoção que seria natural dada a natureza de alguns acontecimentos mas, de vez em quanto, alguma pena de si própria assomava-lhe ao espírito. Outras vezes, ria. Mas, de forma geral, era como se relesse factos alheios. 

Desde há algum tempo uma ideia não lhe saía da cabeça: a vontade de tentar publicar aqueles registos. Sabia dos grandes riscos que correria. Riscos de toda a ordem, incluindo sérios danos reputacionais. Mas, como sempre lhe acontecia, a atracção pelo risco, senão mesmo pelo abismo, falava mais forte. 

Uma outra ideia se tinha sedimentado e, sobre ela, nem se detinha a pensar nas consequências apesar de estar muito claro, para ela, que não seriam indolores. Mas, estranhamente, isso não a assustava. Pensava: ‘O que é que de pior me pode acontecer...? Ficar presa...?’ e sorria. Achava até graça à perspectiva. Seria uma nova experiência. 

Assim, no dia em que concluíu o documento -- depois de ter ido à praia, como sempre agora o fazia -- tratou de criar cópias do documento.  Depois ligou ao advogado e pediu se o podia visitar nesse dia.


Foi ao fim do dia mas antes enviou-lhe o documento por mail. A conversa demorou cerca de uma hora mas, logo de início, ela avisou que não valia a pena ele perder tempo a tentar dissuadi-la. Queria apenas que ele a acompanhasse e que balizasse o que ela deveria ou não esperar face ao que ia contar. Ele estava estarrecido, não queria acreditar no que ela queria fazer mas, depois, percebeu que ela estava irredutível. 

No dia seguinte, levantou-se animada, com aquele seu velho espírito de guerreira. Mas, ao contrário de quando sentia urgência na derrora do adversário, agora sentia uma estranha serenidade. Sabia que ia enterrar a mulher que tinha sido e que ia destruir aquele que todos tratavam como um ídolo da gestão nacional.


Escolheu cuidadosamente a toilette. Queria-se sóbria para que toda a atenção estivesse nas suas palavras e não, como tantas vezes tinha presenciado, no seu decote, nas suas pernas, nos seus lábios. Maquilhou-se, também, de forma natural. Depois um colar muito discreto, os sapatos, a carteira. Quando entrou no carro, colocou uma música que lhe lembrava aquele que um dia o seu coração tinha pensado amar. Ou talvez tivesse mesmo amado. À maneira dela e dele, talvez se tivessem mesmo amado. Uma cumplicidade dissimulada entre duas almas demasiado gémeas. Ou talvez não, talvez fossem opostos, demasiado opostos. Não sabia distinguir. Sabia apenas que, de vez em quando, o que sentia por ele era uma atracção fatal, uma vontade louca de de despenhar, uma cegueira. Na verdade tinha abdicado da sua vida por ele. Ou talvez não por ele mas pela adrenalina que o interdito junto dele a fazia sentir.

O advogado já lá estava. Estiveram lá toda a manhã. Ela disse tudo o que lhe ocorreu e, apesar de não levar qualquer apontamento, o seu depoimento foi bem estruturado, claro, detalhado. Deixou também uma cópia do que tinha escrito. Nessa altura disse: 'Leiam-no como ficção, como um conto erótico, não liguem, tenho uma mente perversa, imagino coisas, cenas de sexo em locais impróprios. A essas partes não liguem. No resto podem acreditar. Em Tudo. Bem, em quase tudo que a mente é traiçoeira'. 

Os que a ouviam e que tinham pedido licença para a gravar não tiravam os olhos daquela mulher tão bonita e que, dizendo o que dizia, se tornava enigmática. Sentiam-ma perigosa na sua sofisticada sedução, toda ela feita de inteligência e sensualidade.

Quando saíram, foram almoçar. Ela estava leve, alegre. Quando se separaram, o advogado lembrou-a: ‘Sabes o que te espera, não sabes, Lu…?’. Ela sorriu. Gracejou: ‘Quantos são? Quantos são?’

Foi a casa. Tomou banho, dormiu. Depois comeu qualquer coisa. Mudou de roupa, apanhou o cabelo. Pensou que aqueles brincos ficariam deslocados no contexto mas fazia questão de os levar. Presente dele. Jóias valiosíssimas.


Foi ao fim do dia que lá chegou. Quem ainda lá estava, olhou-a como a uma aparição. Ela sorria. Foi ao seu gabinete. Parecia-lhe cenário de um filme que já não era o seu. Subiu os estores, reclinou-se na sua confortável cadeira, abriu as gavetas, viu o creme das mãos, batons, um pequeno espelho de mão, canetas. Despojos de uma outra era.

Passado um bocado, ouviu aqueles passos que tão bem reconhecia. Ele entrou e fechou a porta. 'Que novidade é esta? Apareces assim, sem avisar? E não ias dizer nada? Vinhas e saías sem me dizer nada?'

Ela olhou-o, muito calma. 'Que ideia. Vim cá de propósito para falar contigo. Estava apenas aqui a matar saudades e já lá ia.'

Ele irritado: 'Vê lá, se queres que eu saia, saio, não quero incomodar'. Ela reparou que ele tinha envelhecido. Reparou também que, pela primeira vez, o via com uma camisa sem botões de punho. Pensou: 'Noutras alturas dir-lhe-ia: deixa-te desse mau feitio e desabotoa a camisa para eu me encostar ao teu peito' e ele obedeceria e ela encostar-se-ia, cheia de medo que alguém abrisse a porta. E depois beijá-lo-ia porque aquele medo abria-lhe o apetite.

No entanto, limitou-se a dizer: 'Podes ficar. É simples. Vim demitir-me. E vim dizer-te que hoje fui contar tudo.' Ele sentou-se, visivelmente transtornado. Ela continuou: 'Está tranquilo. Segui o teu conselho: levei o Manel'.

Ele olhava-a, sem coragem para fazer perguntas. Ela continuou: 'De muito, como deves calcular, já desconfiavam. Daí as buscas. Confirmei o que era de confirmar, expliquei os métodos, quem, como, quando, quanto. Deixei-lhes também o que andei a escrever. Entretanto, também vou ver se alguém quer publicar. Presumo que a minha vida, a partir de agora, seja diferente. Mas já andava farta de tanto esquema, de tanta optimização fiscal, de tanto parecer jurídico, de tanta, tanta treta, de tanta dissimulação. Estava farta de ti. Farta da vidinha estúpida de que tu tanto gostas. Farta da estúpida em que estava eu também a tornar-me. Farta de te querer e de nunca de ter, farta de não poder andar de mão dada contigo, farta de não sair disto, de não te mandar dar uma grande curva. Pois bem. Mandei. Ciaozinho'

Aproximou-se dele, deu-lhe um beijo na boca. Ele estava inerte. Ela aproximou-se da secretária e disse: 'Verdade seja dita que nem a dar beijos és bom, tudo muito na base do faz de conta'.

Tirou um envelope da carteira e entregou-lhe. Depois tirou os brincos e deixou-os junto do envelope: 'Foram pagos com o cartão da empresa, ficam aqui'. Calmamente tirou outros da carteira, muito simples, que colocou. Soltou o cabelo. Sorriu. E saíu.


Dias depois, as notícias davam conta de buscas na sede da empresa. E, sem surpresa, ouviu que ele tinha sido constituído arguido. Disse em voz alta: 'Sou mesmo uma femme infidèle.' Depois encolheu os ombros, suspirou 'Paciência'. E teve vontade de lhe ir dar um beijo.


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The End

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Este texto que acabei de escrever vem no seguimento do penultimo episódio deste folhetim:



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