sábado, julho 08, 2017

Caminhos e destinos em vol d'oiseau




Tenho aqui ao meu lado três livros. Volta e meia abro um deles ao acaso, leio. Não é meada de que tenha que guardar a ponta do fio. Onde eu abra, está bom de ler.

Com jornais, não é bem isso mas quase. Em papel, desabituei-me de os ler. Mesmo na empresa, em que se assinavam uns poucos, acho que desistiram. Eu, pelo menos, deixei de os ver por lá. Na net, abro, espreito, sigo para outro. Mas, quando os lia em papel, lia do fim para o princípio. Em revistas, a mesma coisa. Não sei dizer porquê mas é assim. No outro dia, estava a ver a minha menininha linda a fazer exercícios num livro que lhe dei e que era qualquer coisa como 'desenvolve o teu QI'. É que ela adora fazer estas coisas, descobrir a sequência, a lógica, a peça que falta, a que está deslocada no contexto, coisas assim. O curioso é que, em cada página, fazia os exercícios de baixo para cima. 
Quando eu, mal fiz dezassete anos, fui viver longe dos meus pais, almoçava e jantava onde calhava, em especial nas cantinas universitárias. Sou de boa boca e onde os outros protestavam veementemente, comia eu de gosto tudo o que vinha parar ao prato. Contudo, durante todo esse tempo eu estava desejando chegar a casa para comer o meu petisco de eleição: pescadinha fresca, daquelas de anzol, marmota (acho eu que lhe chamam), com batatas cozidas, brócolos ou feijão verde e ovo cozido. Pois bem, se perguntarmos à minha lovely menininha qual a sua comida preferida dirá sem pestanejar: 'peixe cozido com batatas, brócolos e ovo cozido'. Nas coisas mais incríveis, mostra bem que herdou alguns dos meus peculiares genes.
Bem. Seguindo.


Eu a ler cada vez mais sou assim como vos conto. Páginas soltas, salteadas. Os livros que aqui tenho agora são Caminhos e Destinos, a memória de outros II, de Marcello Duarte Mathias; O homem fatal de Nelson Rodrigues e, ainda, a Poesis da Maria Teresa Horta. Memórias, apontamentos, crónicas soltas, poesia. 

Cada vez me sinto mais afastada da leitura aturada. Nunca na vida poderei discutir uma obra com quem quer que seja pois nunca na vida seria capaz de me pôr a ler, página por página, fazendo investigação séria para estudar influências ou apurar referências implícitas, criando anotações, ou, se caso disso, procurando o texto na língua original. Perceber a geneologia, a genética da escrita ou a gramática, o corte e costura havidos antes do autor ali chegar são matérias que não me interessam. 

Talvez eu tenha sido pássaro quando alguns dos meus actuais átomos por aí andavam, antes de se terem juntado e formado esta que aqui vos escreve. É que o que me cai bem é o vol d'oiseau, o saltitar de ramo em ramo, página aqui, página ali, o descer à terra para picar isto ou aquilo ou olhar ao longe e logo voltar a voar, outro livro, outros horizontes.


Admiro aqueles que se entregam a um livro como se estivessem numa missão de vida, meses a fio, horas e horas, mergulhados num poema, num texto -- abdicando de viver. Só por existirem missionários assim é que, depois, posso pegar em parte dos livros que leio. Contudo, prefiro os livros que apresentam trabalho limpo. Não gosto de ler textos sarapintados com números de chamada, com textozinhos pequenos a comentar isto ou aquilo. Não gosto. Sei que é material de estudo mas, para mim, é gossip, é fofoca literária, é ruído, é poluição. Se gosto de ler um texto, quero tê-lo imaculado, do produtor ao consumidor, nada de falatório miúdo na esquina da página. Quero lê-lo como se fosse a primeira leitora. A única, até. 

E, cada vez mais, gosto mesmo é de ler texto escrito ao correr da pena, escrita despojada, lembrança, pensamento, carta, quase como se fosse coisa de nada. Mas coisa escorreita, elegante, com riqueza de substrato, gramaticalmente a corresponder à melodia das palavras. E tem que vir com sangue na guelra. E qualquer coisa ali tem que surpreender: ou a beleza da sequência ou o inusitado da ideia.


E depois a poesia. O sopro, a carícia, o lamento, o rasgão, o murmúrio  o desejo. Leio poemas em blogs, leio nas páginas que abro ao acaso. A forma mais genuína e pura de dizer.

Ah, a beleza
da entrega aturdida
que em mim se comprazia

-- Vem minha reinventada!
Digo eu à poesia

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[Poema de Maria Teresa Horta, fotografias de Guy Bourdin e, de novo, Louis Armstrong em A kiss to build a dream on ]
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E, permitindo-me recomendar que desçam até à graça de uns certos bancos públicos, desejo-vos um belo sábado.

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