E digo outra coisa em comum porque uma tenho à partida e é óbvia: tal como elas, sou mulher. De qualquer maneira, embora os exemplos conhecidos sejam de mulheres, penso que isso se deve a que as mulheres têm a coragem de confessar as suas inseguranças enquanto os homens padecem do síndroma do macho man e sentem que têm que se mostrar sempre seguros e fortalhaços. Tirando, claro, alguns mais ousados e corajosos.
Mas, e reportando-me agora ao tema que aqui me traz, há uma coisa que sempre tive e sempre achei que era uma coisa cá minha, sem nome, uma coisinha ruim a roer-me a alma.
Já o disse muitas vezes: sempre fui aluna razoável, notas assim-assim no que fosse de 'empinar' e notas muito altas no que fosse de raciocinar. Contudo, sempre tive tantas solicitações na minha vida que estudar não era propriamente a minha primeira prioridade.
Ainda agora, de vez em quando, felizmente cada vez mais raramente, sonho com isto: chego à escola e há exame, todos preparados e eu apanhada desprevenida, sem ter estudado nada, sem saber sequer qual a matéria que entrava. Por vezes, falta-me mesmo o material -- compasso, régua, esquadro -- e aí a aflição é ainda maior. Ninguém mais se tinha esquecido, só eu. E, sem material, nem sequer poderei fazer o exame. Uma angústia pela minha irresponsabilidade.
Penso que estes sonhos resultam dos sustos que frequentemente apanhava. Nas ante-vésperas de testes ou exames, ouvia os colegas falarem de directas, de andarem a fazer cábulas para um just in case, de terem lido várias vezes a matéria e ainda estarem a milhas -- e eu, na levezinha, praticamente sem me ter preparado, a achar que sabia o que havia para saber e confiante que uma lambuzadela seria mais do que suficiente para refrescar ideias, mas, de súbito, a assustar-me: e se a matéria era mesmo difícil? Ou tanta que não teria tempo para lhe passar os olhos por cima, nem mesmo em diagonal?
Furiosa leitora de tudo o que apanhava, devorava livros lá de casa, da biblioteca, emprestados em especial de uma amiga da minha mãe, o que calhava. Aliado a isso, os namoros fogosos que sempre alimentei e que me ocupavam grande parte das horas livres. O período de concentração para o estudo era reduzido. Os meus pais chegavam a casa lá para as seis e só a essa hora é que eu me dedicava à minha condição de estudante, depois lá para as oito jantávamos e supostamente não poderia deitar-me muito tarde porque no dia seguinte as aulas começavam às oito e meia da manhã. Na faculdade ainda pior. Durante algum tempo, andei com dois ao mesmo tempo o que me ocupava a agenda por completo já que embora eu estivesse no mesmo dia com os dois, eles não podiam encontrar-se. No dia em que se cruzaram, o namorado a sério quis bater no outro. Portanto, sendo maluca, eu não era parva a ponto de me meter no meio de fogo cruzado. Ora, para estar com um das tantas às tantas, com o outro tinha que ser depois disso e até às tantas.
Acontece que tinha alguma facilidade para a aprendizagem e boa memória e, o mais importante, sorte e, portanto, aparecia com notas altas.
Claro que isto fazia com que parte dos meus colegas achasse que eu me armava, dizendo que não estudava, quando, na volta era mas era uma marrona encapotada. Mas não me armava, era mesmo como vos contei.
O que eu não lhes confessava era que achava que as boas notas eram sobretudo, obra do acaso, da sorte. Não mérito meu.
Já o contei aqui. Uma vez tive um primeiro vinte (depois voltei a ter mas o fuzuê armou-se apenas na primeira vez). Foi um escândalo. Por causa disso, desencadeou-se uma celeuma entre os professores, tendo havido até uma reunião de professores das várias escolas da cidade para discutirem em que circunstâncias se poderia dar um vinte a um aluno. Houve também alguns pais que pediram reuniões com o reitor para manifestarem preocupação pela saúde mental daquele professor ou para saberem se a escola tinha entrado numa perigosa deriva facilitista.
Assisti a isso com incredulidade, como se aquilo não tivesse nada a ver comigo, esperando que passasse depressa a confusão, não fosse ainda lembrarem-se de me sujeitar a um exame e eu estampar-me ao comprido.
Na faculdade aconteceu-me várias vezes essa desconfortável sensação. Acima de uma certa nota nos exames (creio que 16), tinha que haver defesa de nota, isto é, uma espécie de prova oral, por vezes com júri. Com excepção da primeira vez em que fui sem saber ao que ia, das outras vezes ia uma pilha de nervos. Achava sempre que podia muito bem acontecer que fosse desmascarada, que se provasse que aquilo das notas altas nos exames era coisa do acaso, roleta, sorte ao jogo, coisa nessa base.
Uma vez participei num programa de televisão, coisa entre escolas. Fui escolhida, em votação de alunos com validação de professores, para ir representar o liceu em determinada matéria. Essa foi uma outra altura conturbada da minha vida. Tinha-me zangado com um namorado e, para lhe provar que ele era parvo, comecei a namorar com aquele de quem ele tinha ciúmes e por causa de quem nos tínhamos zangado. Portanto, a minha cabeça andava ocupada com o começo de um namoro com alguém que me amava de paixão e a quem eu tinha vergonha de confessar que tinha começado a namorar para atazanar a cabeça do outro e, ao mesmo tempo, ainda perdida de amor pelo primeiro mas incapaz de dar o braço a torcer apesar do que me custava vê-lo a descarrilar a toda a brida.
Portanto, praticamente sem tempo para estudar para as aulas, muito menos tempo eu tinha para me preparar para o programa de televisão.
De resto, aquilo era, sobretudo, uma festa, conhecer gente de outros liceus, uma animação, o ambiente das gravações, a malta da assistência a gritar o meu nome, uma coisa quase feérica.
E, então, no meio de tudo aquilo (e já o contei, desculpem, mas vou voltar a contar), acontecia qualquer coisa de inexplicável: quando chegava a minha vez de responder, tirando uma ou duas vezes em que chegava ao fim da formulação da questão e não tinha registado uma única palavra, tendo que pedir que repetissem, das outras vezes respondia ao fim de segundos, não sei como, ao calhas, e por mais elaborada que fosse a questão, respondia certo. A plateia quase vinha abaixo, com gritos e palmas.
Por vezes, na segunda feira, os professores, admirados com a minha rapidez nas respostas, perguntavam que linha de raciocínio tinha eu seguido e, para minha aflição, quase era incapaz de explicar, sobretudo porque a explicação correcta demorava algum tempo, não os segundos em que eu tinha chegado à resposta.
Para quem assistia lá em directo e, depois, na televisão, eu passava por ser a modos que um pequeno génio. Para mim, era sorte, acaso, um tiro no escuro que, por mera ventura, acertava no alvo. Quando na rua as pessoas me felicitavam, eu sentia-me atrapalhada e só pensava que tomara que nunca descobrissem que aquilo nada tinha a ver com inteligência ou trabalho, era tudo fruto de uma sorte do caraças pois, muito sinceramente, a sensação que tinha era que respondia sem pensar, completamente ao acaso.
Esta sensação tem-me acompanhado a vida inteira. Também já o contei: vou para as reuniões sem pastas, dossiers, tablets, blocos de notas. Nada. Se vou eu fazer uma apresentação, enquanto os meus colegas que também vão faze,r frequentemente a levam em papel para, antes, darem uma leitura preparativa, eu nunca me lembro de tal coisa. Só à chegada, quando vejo toda a gente a sacar do seu arsenal e eu nada, muitas vezes nem a caneta encontro na carteira, é que me dá aquele tal velho medo: será que deveria ter-me preparado? será que melhor teria sido se tivesse trazido documentação de suporte? E daí ao medo de que, quando chegue a minha vez, não me lembre do que devia, não saiba responder a questões que me ponham, é um ar que lhe dá.
Pois bem.
Li que Michelle Pfeiffer, que agora está de volta ao cinema -- como há dias aqui referi (no caso Madoff) -- confessou que toda a vida o síndroma do impostor a acompanhou: o receio de que descobrissem que é uma fraude e lhe peçam de volta todos os prémios que recebeu.
Ao procurar algo mais sobre este síndroma vi que várias super estrelas dele padecem e que, pasme-se, também um número significativo de gestoras de topo, o sentem. No outro dia, ao ver uma entrevista com a Jane Fonda, ela contou que a Marilyn Monroe lhe tinha contado que andava a estudar (no Actors Studio) porque tinha pânico que descobrissem que ela não tinha qualquer talento. Imagine-se.
E eu, lendo os seus testemunhos, fico (a modos que) mais tranquila: afinal não é pancada só minha. E não é que eu, nem de perto nem de longe, me queira comparar com as virtuosas figuras citadas, mas se com elas acontece isto, fará comigo, poor, poor me. Posso achar que estão completamente enganadas algumas almas mais caridosas que ainda pensam que tenho alguma little quelque chose, posso achar que na minha vida, mais do que mérito, tenho tido é sorte, mas, enfim, há afinal gente verdadeiramente talentosa que padece do mesmo mal que eu.
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E não se esqueçam de descer para verem uma coisa que se não é do além por lá anda perto: uma serpente crucificada.
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