terça-feira, maio 16, 2017

Livros meus, vida minha





Quando olho para trás, vejo que li por revoadas. Em pequena gostava da Brigitte de Berthe Bernage. Tinha vários livros dessa série e havia, a meus olhos, um toque poético naquela forma de escrever.

Não sei como se foi dando a evolução mas lembro-me de ler um, após outro, os livros de Fernando Namora, propriedade dum médico que estava longe e cuja silenciosa muher vivia na penumbra, numa casa grande que tinha móveis escuros, sofás de pele castanha já gasta, estantes até ao tecto. Não tinha filhos. Eu ouvia-a segredar à minha mãe que não sabia se aqueles livros seriam adaptados à minha idade. Se bem situo no tempo, teria uns treze anos.

Houve outra fase: a dos livros da biblioteca do liceu. Aí as estantes eram também muito altas mas com portas que tinham uma rede fina. Não sei se teriam vidro. Se calhar tinham mas lembro-me é daquela malha fina, quase transparente.


Muitos aí. Somerset Maugham, uma grande paixão. Lisa, a Pecadora. Falava do que eu desconhecia mas de que, mesmo sem compreender, eu gostava de ler. Depois Pearl S. Buck. Livros comoventes. De cada autor eu lia tudo o que lá havia. Lia pela noite dentro, uma pequena luz. Por vezes, se ouvia algum dos meus pais a levantar-se, apagava rapidamente a luz. Mas, por vezes, a minha mãe era silenciosa, apanhava-me desprevenida.

Os livros lá de casa não me despertavam tanta atenção, era como se fosse território que a qualquer momento podia deitar a mão, ao passo que os outros podiam desaparecer (temia eu). Mas lá de casa lembro-me de como me impressionou O Jogador de Dostoevsky. Sofri com aquela compulsão. Muitos anos mais tarde, quando conheci um jogador de carne e osso pensei muito naquele outro que simplesmente não podia parar.

Quando comecei eu a escolher os meus livros, descobri o D. W. Lawrence. Um fascínio. Mal acabava de ler um, logo tinha que ler o outro. Ficava presa daquela escrita.


Talvez por essa altura estivesse já na faculdade e frequentasse diariamente os alfarrabistas da Rua Nova do Trindade. Não me lembro se esses livros eram novos, talvez dos saldos da Bertrand onde perdia a cabeça, se eram usados.

Poupava nos gastos, almoçava e jantava quase sempre nas cantinas, para gastar o dinheiro da mesada em livros, teatro, cinema.

Penso que deve ter sido nos saldos da Bertrand que conheci Violette Leduc e os seus livros perturbantes. O primeiro que li, A Bastarda mostrou-me, de novo, um outro mundo.

A minha personalidade formou-se, certamente, com muita dessa heterogeneidade a que eu ia deitando mão.

Se eu falava a algum dos meus colegas dos livros que lia raramente alguém deles tinha ouvido falar. Por isso, fui-me desabituando de falar sobre os livros que andava a ler.

Quando fiz dezassete anos, recebi de presente A Selva em formato gigante com capa de pele verde e gravuras de Júlio Pomar. Um outro mundo. E daí até ir lendo, um após outro, os outros livros de Ferreira de Castro foi um ar. Conhecia, por essa via, os rigores das invernias na serra, a pobreza partilhada entre homens e bichos, a neve, os lobos, territórios que, emocionada ia imaginando.


Não me lembro se foi por essa altura, talvez no seguimento, que comecei a ler os brasileiros. Outro encantamento. Aí a língua chilreava, andava pelos campos, percorria o corpo das mulatas, vergastava as costas dos negros, acarinhava o colo das mães, enternecia-se com o choro dos meninos. José Lins do Rego, Gumarães Rosa, Jorge Amado. Gilberto Freyre. O que eu gostava dos brasileiros. Um dia um tio meu escandalizou-se: 'E o Olhai os Lírios do Campo?'. Aquele título afastava-me. Gostava então de palavras com cheiro a capim, a mulheres enrugadas ou a gemidos de amor nas cabanas da beira da praia. Lírios do Campo parecia-me anunciar prosa lírica demais para o meu gosto. Fui ali espreitar. Está no meio de mais outros dele. No entanto, se me lembro dos brasileiros é dos que antes referi que me lembro. Depois, mais tarde, vários outros. E outras também. Várias com uma qualidade assombrosa e não quero citar nenhuma pois não saberia hierarquizá-las e podia ser muito injusta porque, sendo desiguais, de todas eu gosto.

Já mais recentemente comecei a conhecer outros. A mesma riqueza. Tantos tão bons, uma prosa sempre tão suculenta, tão criativa.

Não consigo localizar no tempo, mas tempos houve que era Georges Simenon. Não podia separar-me dele. Olho para trás e há ali uma prateleira cheia dele e não saltei um, li cada um. Não sei porquê nunca me senti atraída pelo Le Carré. Mas o Simenon, que elegância apesar da aparente secura.

Também a Patricia Highsmith ou a Ruth Rendell ou Barbara Vine, mas nada que se compare a Simenon.


Já foi no trânsito que comecei a ler o Garcia Márquez. Lembro-me bem. O trânsito parado, eu a atrasar-me e a qerer que a fila não se mexesse para eu ler mais. Gostei mais do Amor em tempos de Cólera do que dos Cem anos de Solidão. Mas gostei de todos. Uma vez mais, um mundo novo.

Chego aqui e penso: em que altura li a Sibila e fiquei com aquela perturbação boa de quem sente estar a descobrir uma voz nova. Contudo, dos romances de Agustina nenhum outro volto a agarrar-me assim. Recentemente os ensaios, biografias, divações, isso sim. Ou em que altura li todos os do Abelaira -- não consigo localizar no tempo. Ou li de uma penada, entusiasmada com a descoberta, o José Rodrigues Miguéis. Ou quando é que me deliciei com Eça de Queirós, rendida à ironia, ao humor fino, à inteligência elegante, ao charme discreto de Eça...?

E, tendo gostado do Memorial do Convento, logo me desinteressei dos restantes até um amigo me dizer que era imperioso que lesse o Ensaio sobre a Cegueira. Resisti. Mas um dia cedi. E foi um dos livros que me marcou profundamente. Lia até às duas ou três da manhã, sem conseguir parar. Gostava de o reler mas ainda não consegui ter coragem, tenho receio de achar que, afinal, não é assim tão extraordinário. Quero continuar a acreditar que o é.

Não vou continuar porque sinto que estou a aproximar-me de memórias mais recentes.


E não falei da poesia. Da presença constante da poesia. Um dos primeiros livros que pedi pelo natal aos meus pais foi o Poemas do Deus e do Diabo de José Régio. Escolha surpreendente numa jovem alegre, namoradeira, que, por essas alturas, no secundário, optava pela vertente das ciências exactas. Não faço ideia de onde nasceu a ideia mas lembro-me de como me recolhia, lendo aqueles poemas. O primeiro de uma longa colecção de livros de poesia, alimento indispensável.

Olho para a minha vida: sempre cheia de trabalho, não prescindindo de ser mãe a tempo inteiro, nunca faltando a uma reunião na escola, sempre a querer que estudassem, que fizessem os trabalhos de casa, ao fim de semana sempre com amigos em casa ou em casa deles, à sexta e ao sábado à noite sempre na rambóia com família e amigos. E, no entanto, os livros que eu já li.


Uma vez um amigo, um que me deu a conhecer Japrisot, disse-me: nem que eu viva duzentos anos conseguirei ler metade dos livros que tenho. Achei aquilo de um derrotismo desagradável. Hoje penso o mesmo mas isso não me incomoda. Mesmo que apenas os tenha folheado, lido partes, sentido um pouco da beleza que la se esconde já é bom. Não é possível apreender tudo o que de bom há no mundo nem é possível deliciarmo-nos com a harmonia do todo se mergulhamos demasiado a fundo em apenas uma das partes. Vou lendo. E, olhando para trás, quantos mundos já eu visitei através das páginas dos livros...?

Estava há pouco a ver a lista de livros preferidos de alguns escritores e pensei que eu não saberia fazê-la. Mas para que haveria eu de fazer tal lista?

Mesmo não tendo a preocupação de fazer uma, tenho a certeza de que cometi erros grosseiros, deixando para trás autores que muito aprecio -- e já estou a lembrar-me de Aquilino, por exemplo, Ou de Thomas Mann. Ou de Kundera. Se amanhã reler o que estou a escrever ficarei irritada por ter esquecido nomes que tanto de bom me deram e que apenas por não me pôr a pensar antes de escrever ou, mesmo, enquanto escrevo, permito que injustiças imperdoáveis aconteçam. Olha, Yourcenar. Como pude não falar dela? Como se um dos livros que achei melhor escritos não fosse o Memórias de Adriano -- tanto que me recusei a acabar de ler para ter sempre, de reserva, a certeza de que tenho um grande livro para acabar de ler. Ou os vários da Duras que li de seguida? Ou o Durrell? Ou o Beckett? E Hemingway...? Tanto que gostei do Adeus às Armas ou O Velho e o Mar. Ou o que gostei da Cartuxa de Parma?


Tenho que parar. Parece que agora começam a surgir, revoltados, aqueles que silenciei. 

Deveria ter-me preparado antes de ter começado a escrever este post. Pena. Mas agora já não dá, estou cansada, com muito sono, a bem dizer já verdadeiramente a dormir. Nem consigo olhar para trás, para o que escrevi (relevem, pf, as gralhas).

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