Era uma vez um passarinho. Pousou em cima de uma pedra grande ali às portas de uma igreja pequenininha. E eu pus-me a olhar a ver se percebia que passarinho era ele. E depois, como não percebi, pus-me a olhar para a pedra, a ver se percebia se ele estava bem ali e achei que não, que haverá de lhe faltar algum conforto, parece que falta um assento àquela pedra.
Quando eu era pequenina, havia uma pedra grande ao pé da casa da minha avó, mas não tão grande quanto a do passarinho. Saía do chão, tinha uma leve elevação à frente e outra atrás e, para mim, era como se fosse uma mota igual à dos meus tios. Eu gostava de andar de mota mas os meus pais não queriam que os irmãos mais novos me levassem. Mas eles, por vezes, desobedeciam e, às escondidas deles e das minhas avós, levavam-me. Eu ia atrás, agarrada a eles, se o passeio fosse só na rua, ou à frente, eles dobrados sobre mim, se o passeio fosse maior. Na altura, não devia haver isso dos capacetes. Eu, pelo menos, não me lembro de eles me porem capacete. Agora que escrevo, tenho ideia que talvez eles tivessem mas devia ser grande demais para mim. Lembro-me bem, isso sim, dos meus cabelos compridos a voarem e do ar frio que tanto me agradava quando me varria o rosto, as pernas, os braços.
Então, porque eu gostava tanto de passear, eu ia chamar o meu grande amigo, inseparável amigo, um ano mais velho que eu e um deus de paciência, e fazíamos de conta que íamos passear de mota. Sentava-me atrás dele -- a pedra era plana entre as duas elevações, fazia um banquinho mesmo bom e à nossa medida -- abraçava-o pela cintura e imaginava que íamos por montes e vales, o vento a fazer voar o meu cabelo, a levar-me para longínquas paragens. Nessa altura eu era muito conversadora, passávamos tempos naquilo, eu fazia perguntas, ele respondia, eu contava alto o que a minha imaginação ditava e ele escutava.
Era tímido e reservado, ele. Eu era alegre, namoradeira, desde pequena assim. Fazia-lhe ciúmes, fazia de tudo para ele reagir, para ele se zangar, para ver se ele se manifestava, se ele pedia para eu não ser assim. Mas ele nunca se zangou, nunca se queixou. E eu não conseguia estar longe dele. O nosso convívio interrompeu-se por volta dos meus dez anos. Voltei a vê-lo uma ou duas vezes depois disso, ainda jovem adolescente. É que a minha avó mudou de casa e os pais dele também. A última vez que o vi foi no velório da minha tia. Eu estava à porta da igreja entre um grupo que conversava e vi chegar um homem moreno, já um bocado grisalho, e muito alto, encorpado. Ele veio ter comigo. Disse o meu nome, no diminutivo. Eu olhei para ele, perturbada. Era o pai dele. Pensei: 'Não pode ser, já morreu. Ou... não morreu ainda? Mas, se está vivo, teria que ser da idade do meu pai e não apenas um bocado mais velho do que era quando eu o conhecia'. Fiquei sem saber quem podia ser. Ele apresentou-se. Fiquei bloqueada. Não podia ser. O meu amigo não podia estar assim, um homem já daquela idade, tão igual ao pai. E como tinha crescido. Ele disse: 'Eu conheci-te logo, o teu sorriso é o mesmo'. Com ele vinha uma mulher, uma senhora da idade dele. Ele apresentou-a: 'A minha mulher'. Pensei: 'Nunca andará de mota com ele.'. Ela, simpática, disse: 'Finalmente conheço-a. Tanto que tenho ouvido falar de si'. Eu acho que não fui capaz de dizer nada. Provavelmente nem fui capaz de sorrir. Mas, como estava abalada pela morte da minha tia, talvez a minha perturbação tivesse passado por ser tristeza. E era.
Ele ainda ficou por ali, penso que a tentar conversar. Mas acho que não fui capaz. A ocasião não era propícia a que eu lhe perguntasse se se lembrava dos nossos passeios de mota, montados naquela pedra, eu abraçada a ele. Ou das tardes que passávamos a conversar na cabana que o avô lhe tinha construído ao fundo do quintal. E a minha avó a comentar com o avô dele, 'Mas que é que estas duas alminhas tanto têm para conversar...? Horas a fio...'
Naquela altura, ele era um menino muito inteligente, tinha recebido o prémio de melhor aluno do país. Sempre reservado, nunca o evidenciando, assim se manteve enquanto estudou, um aluno brilhante. Fui sabendo disso pela minha avó, assim como fui sabendo que, enquanto eu ia alegremente namorando, ele se mantinha sozinho.
Podia ter tido uma 'carreira' de sucesso, ele. Trabalhou na banca, teve funções de responsabilidade. Mas, há algum tempo, uma depressão séria levou-o a largar tudo antes de tempo. Presumo que tenha recebido uma indemnização, talvez boa. Comprou uma quinta e, segundo me conta a minha mãe, é lá que passa grande parte dos dias, sozinho. De vez em quando vai à casa na cidade, de vez em quando a mulher vai lá ter com ele. A minha mãe diz: 'No fundo, é do que ele sempre gostou'. Deve por lá andar a trabalhar a terra, se calhar a cuidar de animais, ou, então, a ler, a ouvir os passarinhos. Não sei de nada disso de anjos mas penso que tomara que um anjo o guarde. Quanto mais não seja, o anjo das boas memórias.
Mas, enfim, nem sei a que propósito veio isto.
Ah, sim, já sei. Mas aquela nossa pedra era mais pequena, com umas curvas suaves, e toda a pedra era mais macia que esta em que o passarinho de pedra pousou.
Nem sei porque é que me deu para me pôr com estas recordações. Na verdade, nem sei se ainda existe aquela pedra ou, sequer, aquela casa da minha avó. Provavelmente não, já nada. Mas também não quero ir lá ver. Prefiro apenas recordar -- enquanto aguardo que os passarinhos comecem a cantar aqui na varanda.
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E agora permitam que vos convide a continuar o passeio por esta bonita cidade. Desçam, por favor, que primeiro, iremos de visita ao Henrique Pousão e depois até à da Florbela Espanca.
Pensei que ainda iria visitar o Bento de Jesus Caraça mas o safado deste passarinho desviou-me. Talvez amanhã (e tentarei, como hoje, fazer orelhas moucas às rolhas que o láparo anda a pedir que lhe enfiem -- pela boca, disfarça ele).Mas desçam, por favor.
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8 comentários:
Bonita, essa sua amizade de infância. E que o anjo das boas recordações vos guarde nela que os amigos fazem muita falta e, depois de alguma idade, também nas lembranças.
esqueci-me de dizer que esse pássaro de pedra soa a monstro. Enfim, são gostos.
https://www.youtube.com/watch?v=dNQTpYJJRgQ
Bob Marley
Mais uma bela história da sua infância, Sra. D. UJM.
Que sorte poder continuar a vê-la recordar, sonhar e partilhar os seus sonhos e o seu talento, após tanto caminho percorrido.
Pena é que outros não sejam como você, e só pensem em derrubar e destruir.
Enfim, assim se vê a diferença entre ser-se feliz e vertical e o seu oposto.
Obrigada.
Ana
Olá bea,
Sim, é bom ter amigos e é bom recordar momentos que passámos com amigos nossos. Neste caso, a minha avó manteve-se sempre amiga da mãe dele e a minha mãe, de vez em quando, encontrava-o e, para ela, ele continuou sempre a ser um miúdo, de quem sempre gostou muito. Depois conheceu também a mulher dele e, portanto, embora não o vendo, sempre me mantive ao corrente da vida dele.
No entanto, ao não vê-lo, na minha cabeça ele mantinha-se quase igual ao que era na última vez que o vi.
Lembro-me muitas vezes dele. Durante 10 anos fomos inseparáveis. A minha primeira memória é com ele.
Espero que consigo aconteça também isto: ter boas memórias, gostar de trazê-las até ao presente.
Olá Bob,
Que filme tão bonito... Gostava tanto que um dia me acontecesse o mesmo...
Obrigada. Gostei muito.
Olá Ana,
Aqui a Srº D.UJM agradece as suas palavras. Lendo as suas palavras até me interrogo: será que eu escrevo para mim, pelo gosto de escrever, ou escrevo para os meus Leitores, querendo que tenho gosto em ler-me? Mas não sei qual a resposta.
Seja como for, se para mim é bom e para quem lê, também, então está tudo certo.
Gracias very much Srª Dona Ana.
Ola bea,
Não, monstro não, um bigpassaroco, isso sim porque medo ele não mete.
:)
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