quinta-feira, maio 11, 2017

As pequenas coisas da vida





Depois pôs-se sol, um sol tímido sobre um rio picado e meio esverdeado. Mas, antes, choveu muito -- tal como agora enquanto escrevo. À hora de almoço, atravessei a cidade debaixo de jorros de água. Estava a ouvir uma música que me fazia lembrar o tema principal de África Minha. Pensei que, de uma vez por todas, tinha que instalar o Shazam no telemóvel.

Já o instalei mas ainda não percebi como funciona. Não sou dada a experimentalismos, especialmente quando aquilo me diz: antes de fazermos qualquer coisa, deixe-nos conhecê-la melhor. Não tenho paciência. Era o que faltava dar-me a conhecer. Sei lá a quem e para que fim. Um dia enfio-me no campo, longe do trânsito, de apps, de algoritmos, de tretas.

Enfim. Hei-de descobrir como pôr aquilo a adivinhar-me as músicas mesmo não sabendo nada de mim.  A ver é se depois não me esqueço de o usar quando quiser saber o que estou a ouvir. Não é o conhecimento pelo conhecimento que, neste caso, me motiva mas, sim, a possibilidade de poder voltar a ouvir aquilo de que gosto especialmente quando estou a conduzir.


No outro dia, desci no elevador com uma vizinha, uma das poucas que conheço neste prédio em que parece que está sempre a entrar gente nova. Esta já cá mora há mais tempo que eu. É um bom bocado mais velha que eu e pouco cá pára. Tem uma casa no Algarve e um barco e diz que lá estão melhor, que não há um trânsito como o que há cá, que aquilo lá é calmo e o tempo melhor. O marido teve um problema de vista e penso que uma cirurgia mal sucedida o deixou cego. Foram a Barcelona, correram médicos de norte a sul do país e parece que o problema é irreversível. Então, agora é ela que conduz, que trata de tudo e que o leva pela mão. Não sei se ainda têm o barco. Desde que se tinha reformado, era a grande ocupação dele. Pintava o barco, tratava do motor, saía para o mar, limpava-o, etc., e ela ficava descansada na vida dela enquanto, durante o dia, ele andava naquela fona. Sempre enérgica e bem disposta, no outro dia achei-a mais caída. Dizia-me ela, toda compungida, que estava com dores nas pernas, que à medida que a idade avança, começa a dar-se por ela, que nunca julgou um dia ficar assim, cheia de dores. 

Mas o lamento maior dela foi este: ‘A casa é grande, fui enchendo de tralha, tantas divisões, tanto móvel, tanto livro. E eu sou de guardar, custa-me deitar fora. Mas já me custa tanto, quando cá chego ver que está aqui uma casa destas já sem grande préstimo e que dá tanto trabalho a limpar.’ Percebi, sei o que isso é. Mas acrescentou ela ainda: ‘Penso que um dia que eu morra, o meu filho vai suar as estopinhas para se ver livre disto tudo, tenho a certeza de que vai desfazer-se de tudo. O que é que o rapaz fazia a tanta porcaria? Nem tinha sítio para guardar tanta coisa. E, então,penso eu:  para que é que eu ainda estou a guardar isto tudo?’. 

Também, de vez em quando, penso nisto.


Quando via, o marido era muito falador. Perguntava pelos meus pais e contava proezas da mãe, de quando era viva, bem entendido, já que, entretanto, a senhora morreu. Entretanto herdou a casa da mãe e a mulher ainda há tempos se queixava, ‘Só trabalhos, agora ainda mais esta’.

Ele achava que, no fim, a mãe já não estava boa da cabeça e não queria que ela ficasse sozinha em casa, numa outra cidade; e, então, lá a convencia a vir uns tempos para casa deles. Depois logo se arrependiam porque, como diz a minha vizinha, ‘a mulher ficava diabólica’. Uma vez, às escondidas deles, ligou para a polícia. Estavam eles na sala, à noite, descansados a ver televisão, convencidos que ela estava no quarto a dormir, tocam-lhes à porta. Era a polícia, tinham recebido uma queixa de violência doméstica sobre uma idosa. Ficaram para morrer. Foram chamá-la. Estava mesmo já a dormir. Ficou muito admirada ao ver a polícia mas depois disse que eles lhe davam grandes tareias. Aí a minha vizinha diz que ficou passada e que, em conjunto com o marido, decidiram  recambiá-la antes, que, às tantas, se vissem mesmo metidos em trabalhos. Tenho ideia que a puseram num lar. Às vezes é o melhor.

Mas, agora que está cego, ele parece andar perdido, usa óculos muito escuros, parece desamparado e não diz nada. Uma situação que entristece.


Já não sei a que propósito veio isto.

Ah, sim, já sei. 

Em tempos, tínhamos uma aparelhagem muito boa. Colunas grandes. Era um móvel que tinha amplificador, leitor de cassetes, gira-discos. Devia ter outras coisas porque, de cabeça, tenho ideia que havia mais umas coisas no móvel. E tínhamos imensos discos. Eu tinha os meus desde o tempo do liceu, Tchaikovsky, Chopin, Bob Dylan, Joan Baez, Janis Joplin, Simon & Garfunkel. O primeiro disco que comprei com o meu dinheiro foi um dos Wallace Colection. Deve estar ali. O meu marido trouxe os dele. Todos os do Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Luís Cília, Adriano e provavelmente outros nessa base. Entretanto, fomos comprando, comprando. 

Até que tudo aquilo caíu em desuso. Mas eu, que apenas nisto de guardar as coisas sou conservadora, conservo tudo. Nem sei se aquilo ainda funcionaria nem faço ideia do potencial valor histórico de tanto disco. 

Depois passou essa era, vieram os CDs e comprámos um leitor de CD para pôr lá junto à ‘aparelhagem’. O número de CDs é grande, sobretudo de música dita clássica e jazz. No entanto, raramente a ouvimos pois só para ligar aquela aparelhagem toda, no síto em que está, é uma maçada. Volta e meia penso que deveríamos ter um pequeno leitor de CDs -- e se os há baratos. Mas, na verdade, o que se calhar faria mesmo sentido era desfazermo-nos deste elefante. 


Agora, CDs só no carro. E música em casa, no computador. 

As tecnologias vão mudando, os hábitos também. E nós também.

E, no meio disto tudo, o que me tinha ocorrido e que gerou este palavreado todo foi que eu, no carro, ia a pensar: o Shazam era rapaz para me informar, eu chegava a casa e ia procurar, na volta tenho lá e, à noite, enquanto estava na palheta com os meus pacientes Leitores, ia ouvindo de novo. 

O Shazam já cá canta. Falta agora o resto. E eu, por via das dúvidas, fico-me com Haydn que é sempre uma boa escolha.

E usei imagens de Flora Borsi que representam modelos em frente dos quadros que lhes deram origem. Mas, porque nestas coisas nunca nada é verdadeiramente real, é claro que também não são os verdadeiros modelos. De resto, que interessa isso? Sabe-se lá quem é quem, se o objecto representado, se a representação, se a persona filha de seus pais, se a persona pseudónima, filha de si mesma.


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E fico-me por aqui. Contudo, permito-me ainda convidar-vos a descer até ao post seguinte, em que digo umas lérias e escritores falam do seu processo de escrita ou do livro da sua vida.

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5 comentários:

bea disse...

Não querem lá ver que a Vénus caiu da concha e com o estrondo saiu do quadro sem sair da pintura?! Ora esta.

Um Jeito Manso disse...

Não está o máximo...? O que eu gosto de ver coisas assim, divertidas, inesperadas...? Gosto mesmo.

Ana disse...

Estive algum tempo sem vir aqui ao blogue, pois como simples agricultora que sou, estou num momento de grande trabalho: as plantações. Quem quer colher tem de cultivar.
Muito haveria aqui a dizer, a comentar, mas aproveito para sintetizar aqui nesta pequena mensagem.
A Sr. D. UJM todos os dias me surpreende com o seu génio criativo e continuo a dizer (mesmo se pensa que estou a ironizar é verdade) grande cultura.
Não me achando totalmente ignorante, não lhe chego aos pés (e estou a ser franca, mais uma vez).
Lá dizia Fernando Pessoa que o poeta é um fingidor.
Para dizermos as coisas temos de as sentir primeiro e senti-las com força, com intensidade. Senão arriscamo-nos a transcrever, reescrever, o que os outros sentiram e disseram e que retivemos nas nossas leituras, nas nossas observações dos objetos feitos por outros, artisticos ou não.
Estou a reler as "Rêveries d'un promeneur solitaire" de Rousseau. É a partir das suas observações da natureza que ele faz as suas reflexões filosóficas.
Como ele, preciso desse contacto, dessa vivência com o que me rodeia e só a partir daí posso criar alguma coisa.
Fico admirada e provoca-me estranheza que pessoas fujam da realidade, dos outros, e depois lhes saiam das mãos coisas até admiráveis.
Somos todos diferentes.
Temos de nos respeitar uns aos outros.
Cada um tem as suas motivações, limitações.
É fácil dizer isto e aquilo, vestirmos a pele de julgadores, medirmos os outros por nós.
O que é difícil é conseguirmos meter-nos na pele do próximo.
Sabe, Sra.D. Béa, às vezes, marcamos tanto o quadro, que nem saindo dele, deixamos de lhe pertencer e ele a nós. A queda, e sobretudo o estrondo, podem ser momentâneos e passarem. Oxalá...
Sofremos, por vezes, ondas de choque de outros. Essas ondas chocam com as nossas e o resultado é uma grande confusão, um estado quase catatónico.
Há pessoas que reagem de determinada maneira, outros de outra.
E o pior é quando nos acontecem coisas que não compreendemos. Pensamos ter seres humanos à nossa frente e, de repente, nada que nos enfrente e diga diretamente, simplesmente: é isto ou aquilo. Precisam de ir por portas e travessas: incompreensível. O pensamento é que pode desrespeitar antes do resto.
Havia mais a dizer, mas já me ia repetir, então é melhor ficar por aqui.
A rica é bem rica. Continua e continuará a sê-lo, pelos vistos, para sempre. Aí não há qualquer dúvida, nem que um terramoto, seguido de tsunami, leve tudo.
Quero rectificar "enfant de choeur" assim é que é. Estava muito nervosa naquele dia. Tinha-me confrontado com as frustrações de outros.
Talvez a partir de agora tenha mais disposição e mais disponibilidade para ir comentando, sem prometer nada. Isto aqui está em crise.
Tenha uma boa noite e a Sra. D. Béa também.Até à próxima (talvez)
Ana

bea disse...

Ana
não percebi.
Votos de boa noite também para si.

Ana disse...

Sra. D. Bé,
Não faz mal.
Talvez nem seja para perceber. Eu sou confusa.
Desculpe, mas não tem nada a ver consigo, só com o quadro e os seus elementos.
Uma boa noite para si também. Muito obrigada.
Ana