De ano para ano ficam na terra grossas sementes, raízes, bolbos. Misturam-se com as pedras que estão por todo o lado e que, ali, são seres quase vivos. Vêm os grandes calores, depois os amenos entardeceres, e logo os frios, as chuvas, o granizo -- que, ainda há poucos dias, pedras transparentes saltavam no chão -- e, tantas vezes, os ventos inclementes. Terra, lama, ramos e folhas secas.
Depois vem a primavera e da terra começa a rebentar o que no seu ventre se acolheu durante meses.
Depois vem a primavera e da terra começa a rebentar o que no seu ventre se acolheu durante meses.
Sobem as hastes, nascem as folhas, despontam as graciosas flores, pétalas cobrindo pudicamente os segredos mais íntimos.
E eu encanto-me, encanto-me. Não me entendam mal, não estou a usar palavras à toa. Muita coisa me encanta, sim, mas algumas maravilham-me como milagres.
Não acredito que uma senhora tenha aparecido sobre uma azinheira a falar sobre a guerra a pastorinhos encandeados pelo sol. É milagre que, no meu entender, claramente não existiu e sobre o qual não vou nem falar. Mas sei bem o que é começar por alimentar um desvario, fechar os olhos ao exagero ou ao delírio, e depois já se ser cúmplice -- e depois já há muita gente envolvida, e começa a ser materialmente impossível arrepiar caminho e reconhcer: foi um engano. Engano ou embuste, tanto faz. Torna-se impossível. Há embustes colectivos que ganham vida própria. Não é possível retroceder e repor a verdade dos factos. Por isso não falo de Fátima ou de milagres ou de pastorinhos canonizados. Nem falo dos promotores de milagres, autênticos lobbystas junto do Vaticano, gente com voz de sacristia, gente que dedica uma vida a convencer o bispo, o cardeal, o adjunto e o próprio Papa. É um mundo paralelo, um comércio, uma máquina bem oleada. Movimenta a economia de forma não negligenciável: o turismo religioso não é sazonal, traz gente de todo o mundo. É bom para o país e cada um acredita no que quer e, para além disso, acreditar em alguma coisa é uma forma, como qualquer outra, de exercitar a mente. Portanto, no que a isso diz respeito, siga a fanfarra.
Mas, se quiser falar de milagres, de milagres de verdade, é do milagre do nascimento que eu sempre tenho vontade de falar. O nascimento de uma criança, o nascimento de uma flor.
Milagre ou magia -- o inexplicável que nos mostra a existência de algo superior a nós. Talvez seja o ventre da terra, talvez seja o infinito que nos cerca. Talvez.
Milagre ou magia -- o inexplicável que nos mostra a existência de algo superior a nós. Talvez seja o ventre da terra, talvez seja o infinito que nos cerca. Talvez.
Chega a primavera e os lírios do campo aparecem-nos à porta. De uma elegância extrema, com umas cores irreais, um desenho divino, uma fragilidade tocante -- e eu encanto-me com a sua beleza. Um milagre.
E um milagre tanto mais tocante quanto, parecendo que morrem, os lírios voltam a renascer a cada ano que passa. Até a falsa fragilidade é, na realidade, uma discreta e silenciosa resistência. E renascem sempre perfeitos nos seus indescritíveis azuis, na sua beleza tão efémera.
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E, por falar em elegância, beleza e resistência: Misty Copeland, um milagre feito leveza e força
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