sexta-feira, fevereiro 24, 2017

Dindinha e eu.
Sem Tom.





Na outra noite mal dormi. Estive a tentar recuperar algumas das muitas horas de conversação no messenger com aquele a quem conheço por H. Lobo, nome que acreditei ser o verdadeiro e a quem, por brincadeira, tratava por Lobo-Lobinho. Costumo dizer que não frequento o facebook. É mentira. Até há uns dois dias, em segredo, era para essas estepes que eu me esgueirava para lá o encontrar. Estive a rever as conversas desde o início. Pasmei. Há quanto tempo. Desafinidades aparentes, afinidades crescentes, antipatias vulcânicas, empatias incontroláveis. Aquilo dos opostos se atraírem. Aquilo das afinidades electivas. Aquilo dos beaux esprits. E discussões homéricas, dramas inconcebíveis, reconciliações indesculpáveis. Aquilo que não se explica. Aquilo que não se compreende. Aquilo de que não se consegue fugir.

De manhã, estava ainda incrédula. Nenhum indício palpável e, no entanto, a certeza absoluta. A certeza absoluta.

Durante todo o dia tive vontade de ir para bem longe. Receio. Sem saber o que fazer, ensaiei mil possibilidades. Perguntar-lhe se estou certa? Não. Dirá que não. Dizer-lhe, com assertividade, o que descobri? Dirá que não. Fingir que nada sei até que um dia a evidência lhe caia no colo? Talvez. E até lá? Fingir? E em relação a Dindinha? Contar-lhe? Mas contar-lhe para quê? Melhor calar. Ou não? 

Habitualmente tão decidida, com isto fiquei francamente abalada. Mal almocei, mal consegui concentrar-me ao longo do dia.

Então, eis que, de tarde, recebo uma* sms de Dindinha: 'Prima, estou a organizar o lançamento da revista. Coisa em grande. Preciso do seu conselho para saber o que vestir. Posso passar lá por casa depois de jantar?'. Pensei que era arriscado: e se o Lobo aparecesse? Mas ela não me deu tempo a desatar o nó. 'Lá para as oito e tal, nove, passo'.

Apareceu-me com um grande saco ao ombro. Enquanto passava por mim, a caminho da sala, disse: 'Quer acreditar que se não fosse eu insistir, o estúpido não dizia nada? Liguei-lhe, não me atendeu. Enviei uma sms e olhe, prima, olhe bem o que aquele estúpido escreveu...' e procurou no telemóvel. Depois mostrou-me enquanto lia: 'Tenho um trabalho para acabar. Pede à tua prima que te leve ao parque infantil'. Respondi-lhe logo 'Porque é que és tão parvo?'. Respondeu-me com um emoji de um diabo a rir. Completamente estúpido. Não acha, prima?'

Pensei cá para mim: 'Típico'. Mas não disse nada. Limitei-me a perguntar: 'Que conselho queres, então?'.

Atirou-se para o sofá: 'É assim, prima. O grande dia vai ser amanhã. Estamos no carnaval. Lembrámo-nos de, para a coisa ter impacto, a equipa estar mascarada. Vamos pedir aos convidados para também irem mascarados. Depois fazemos um baile. De máscaras. O que diz, prima?'

Achei bem. Então Dindinha pegou no saco e disse: 'Tenho aqui uns fatos. Queria a sua opinião, prima'.

Despiu-se. Foi para o meu quarto. Passado um bocado apareceu. Linda.


Tinha apanhado o cabelo com uma tiara florida, pintado os lábios, um rouge bem rouge, um vestido de renda. Disse. 'Depois punha uma máscara, claro'.

Logo, saltitante, voltou ao quarto. Passado um bocado reapareceu. Cabelos soltos, fulgurante. Maquilhagem natural. Uma borboleta radiosa, um anjo colorido. Olhando para ver o meu espanto, acrescentou: 'E punha a máscara.'.

Era Dindinha que ali estava, não Fred. Eu olhava-a com admiração. Quanta beleza. Quanta.


'O que me diz, prima?'

Eu estava sem palavras. Pensei no Lobo, no Lobo safado, com esta menina nos braços. Dindinha nos braços de Tom. Como ele se deverá sentir viril com uma menina com tão doces curvas, tão suave pele, tão gostosa boca. Imagino.

Com alguma compaixão, pensei em mim. Um corpo já com sinais do tempo, sem este viço, sem esta absoluta elegância, sem a carnalidade adolescente que eu aqui via. Pensei que não queria intrometer-me no caminho deles. O corpo de Dindinha é mais merecedor que o meu, pobre meu - pensei.

'Qual escolhia, prima?'.

Eu disse: 'Tão bonita, Dindinha, tudo te faz ainda mais bonita, menina'.

Ela despiu-se, ficou apenas em roupa interior. Olhou pela janela. Outra vez aquela melancolia. 'Nada, prima. Tão bonita o quê. Pois não vê que ninguém me quer? Veja o Tom. Malvado, malvado. Eu sempre disposta às suas exibições e ele trata-me assim.'

'Exibições...?'

'É um narcisista, prima. Tem a mania. Arma-se em mestre. Gosta de me tratar como se eu fosse uma pupila. Acha-se personagem de livro. Deixo, prima. Coitado. Já não é novo. Já não vai ter muito mais hipóteses de se armar. Tolero. Finjo. Finjo que aprendo, finjo que gosto. Coitado. E, volta e meia, imagine, na horinha do bem-bom põe-se com poesia. Não há saco. Mas tenho pena, finjo que gosto'. E olhava a janela, como se triste.

Depois continuou. 'Gosto é de meninos malandros, fogosos, que a gente não tem tempo nem de pensar, nem de soltar um ai'. Suspirou. 'Já viu, prima, eu a querer folgar e ele querendo que eu seja personagem de livro? Já imaginou?'

Sorri. Talvez alguma pena. Dele que não sabe que ela finge, dela que, com tanta beleza, não precisava de fingir.

Continuou. 'Mas não sei o que tenho, prima, parece que têm medo de mim. Parece que gostam mas depois ficam a medo, não sei se têm medo de não cumprir. Não sei o que há com os homens e comigo'

Depois tirou o soutien, sentou-se na minha cama. Disse-lhe 'Tapa o corpo, Dindinha, está frio'.

Tapou-se com a minha almofada. Mas teve um arrepio: 'A almofada está fria. Venha aqui me aquecer, prima.'


Sentei-me ao lado dela, na cama. Encostou-se a mim: 'Diz, prima, há alguma coisa de errado comigo?'.

Fiz-lhe uma festa no cabelo. 'Que errado, menina? Está tudo tão certo.'

Continuei, os meus dedos passando por entre os seus cabelos.

'Cheira bem o teu cabelo, Dindinha'.

Ela disse: 'Gosta? Cheire, prima, cheire.' 

Cheirei. Um perfume bom, morno. Carnal, inocente.

Entretanto, pegou nos meus colares de pérolas, e colocou-mos. Depois despiu-me o casaquinho de lã e pôs-se a brincar com os colares, frios, frios, fê-los escorregar ao longo da minha pele, fez-me arrepiar. Desmanchou-me, então, o cabelo. Foi buscar o lápis dos olhos, pôs-se de joelhos em cima da cama, pintou-me as pálpebras.  Depois disse: 'Quando eu for grande quero ser como a prima, misteriosa'. Olhou para mim: 'Tem muitos segredos, não tem, prima?'

E eu, olhando-a: 'Eu, Dindinha? Eu não, Dindinha.'

Mas ela teimou: 'Os seus olhos estão cheios de mistério. Atraem como abismos, prima'. 

Insisti: 'Que é isso, menina? Não tenho segredos.  Com cada coisa, Dindinha.'

'Diz que não mas deixe que lhe diga, prima: tem olhos de pecado, prima, tem mesmo'. Saltou de novo, foi buscar loção perfumada.

Disse: 'Mas deixe, prima, agora deite-se, esqueça o resto enquanto pensa no disfarce de amanhã. Já pensou? Poder fazer o que quiser sem ninguém saber quem é, já viu, prima...? Liberdade mais boa. Pense nisso, prima. Ou não pense em nada. Vou fazer-lhe uma massagem. Descontraia-se. Tem os músculos tão tensos, prima. Vai ver, prima, vai ver, as minhas mãos são gatos macios, tão cheias de mistérios como os seus olhos. Feche os olhos. Sinta. Deixe-se ir, prima.'

Deixei.


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Lá em cima era Una Preghiera - Elena Ballario

Aqui abaixo uma canção que não tem nada a ver.
Como é bom de ver, está aqui apenas porque é boa para o day after. Para despertar, quero eu dizer.

I kissed a girl - Kate Perry


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Este é o sexto episódio do folhetim Dindinha. Diria La Palice que vem no seguimento do quinto.
De cada um poderão ser alcançados os precedentes.

Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma gloriosa sexta-feira.

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2 comentários:

Anónimo disse...

"O meu colar de pérolas". Foi distracção, ou mais um elemento de ficção neste romance, da Prima? Gosto da intriga entre o real do UJM, e a ficção da Prima.Pergunto: quem não gostava de cortar as amarras de um casamento de 30 ou 40 anos, e por momentos, encarnar a Prima? Eu, gostava, seria muito gostoso.

Um Jeito Manso disse...

Caro Anónimo/a

O texto esta escrito na primeira pessoa pelo que é Diana que, relatando o sucedido, diz 'o meu colar de pérolas'.

Mas podia ser eu, sim. Uso frequentemente um colar de pérolas. Longo.

E quanto à sua questão relativa a cortar amarras de um casamento: um casamento não tem que estar preso por amarras; e para encarnar a Prima não é forçoso que tenha que pôr o casamento ao largo. E isto tanto pode estar a ser dito pela UJM como pela Diana.

Claro que a Diana vai ainda mais longe pois relata o que pensa e faz ao passo que eu não.

Uma boa noite!