segunda-feira, fevereiro 27, 2017

Baile de máscaras





Estive todo o dia sem saber se ia. Queria mas, ao mesmo tempo, temia ir. Aquele estado de dúvida em que se quer uma coisa e o seu contrário. Se me tivesse esforçado, teria podido confessar que, sobretudo, temia desiludir-me. Longos dias e noites de desilusão já percorreram o meu corpo e a minha alma. Mas, se quisesse expressar o que queria que tanto temia não alcançar também não saberia dizer. Talvez quisesse apenas ser surpreendida. Não sei. 

A meio da tarde fui espreitar o roupeiro que tenho no fundo do corredor. Lá dentro estão vestidos que vesti apenas uma vez, vestidos que levei a casamentos, a jantares especiais, aos bailes a que ia numa minha outra vida. Pensei que já não me serviriam, que ficaria ridícula, que tivesse mas era juízo. Ao fim da tarde fui à procura da caixa com a máscara que, numa tarde de enamoramento e ternos abraços, um longínquo amor me ofereceu. Lá estava, envolta em papel de seda. Coloquei-a. Quando me vi ao espelho senti aquele frémito que tão bem conheço. Em mim, a sede de ceder a todas as tentações manifesta-se assim.

Penteei-me, maquilhei-me. Depois preparei uma bebida. Sentei-me a ouvir música, tentei serenar-me. Não consegui. Com as pulsações alteradas, pensei que era melhor não ir.

Já tinha anoitecido quando Dindinha ligou: 'Então, prima, está pronta?' Disse-lhe que ainda não me tinha decidido. Dindinha gemeu 'Ai, prima, venha, é um projecto tão importante para mim...'. Zanguei-me: 'Deixa-te disso, menina, só por acaso é que eu soube dele...'. Ela negou: 'Era surpresa, prima, só queria dizer no fim, fazer surpresa'. Não me apeteceu discutir: 'Tanto faz. Isso de se ir mascarado não tem jeito. Não me apetece mascarar-me'. Ela gemeu de novo 'Oh prima, mas tinha achado bem... Vá, venha lá. Já viu, se não vem, que sozinha e triste me vou sentir? O estúpido do Tom diz que tem mais que fazer, diz que tem que acabar uma treta qualquer, que não tem tempo para macacadas. Estúpido'. 

Ao ouvi-la, pensei: 'Ele vai' e aí as minhas dúvidas dissiparam-se de vez. Iria.

Vesti-me, perfumei-me, meti-me no carro. Estacionei no parque debaixo da escola e foi então, ao sair, que coloquei a máscara.

Quando entrei, o ambiente era de festa. Toda a gente mascarada, uns mais convencionais, outros pândegos, outros artísticos, circulando, rindo. Música boa.

Depois um sino e logo entrou um grupo de jovens não mascarados. Dindinha estava entre eles e destacava-se pela sua beleza. Foi ela que falou para apresentar o projecto, para apresentar os colegas. No fim, agradeceu ao professor Tomé, cuja ajuda e incentivo tinha sido essencial, disse ela. Enquanto falava, iam passando imagens por trás, a imagem da revista. A seguir, mostraram um filme. Toda a gente aplaudiu. Depois Dindinha disse que ia passar a palavra a alguns colegas mas que cada um tinha apenas dois minutos para falar. De forma muito profissional, cada um disse de sua justiça. O projecto estava bem pensado, a estética com uma elegância muito estimulante. Depois a música subiu de tom. Dindinha disse que lá fora havia comes e bebes e que, ali naquela sala, o baile estava quase a começar. Era só o tempo de eles sairem para se irem mascarar.

As luzes baixaram e começaram a passar imagens da revista nas paredes em volta. Passado um bocado, as luzes apagaram-se por uma fracção de segundo e logo se reacenderam com uma música alto e bom som.

E então toda a gente começou a dançar.

Em vão, tinha já tentado reconhecer o Lobo. Nada. Depois tentei reconhecer Dindinha. Também não. Ninguém. Deixei-me ficar encostada a ver toda aquela festa. De vez em quando passava alguém que me puxava pela mão ou pelo braço, tentando pôr-me a dançar. Muita gente já se abraçava às cegas.

Então, senti um braço sobre os meus ombros. Estremeci. Tentei perceber quem era. Não consegui. A máscara encostou-se à minha pele como que para me beijar. Depois puxou-me e pôs-se a dançar à minha frente, segurando a minha mão. Tal como eu, estava com luvas. Não consegui perceber quem era, se era homem ou mulher.

Às tantas, no meio da confusão, senti que alguém se aproximava e, num ápice, puxava a máscara um pouco para cima e com uns lábios quentes beijava o meu colo. Talvez fosse um abuso mas não me importei. Eu própria começava a ter vontade de começar a abusar.

Dancei. Dancei.

Algum tempo depois, já cansada, fui à procura do bar. Com piada, à porta de uma sala, havia um cartaz a dizer: 'Não é engano. O BAR é mesmo aqui'. Havia um conjunto de máquinas de bebidas e de sandes e bolos numa das paredes e na parede oposta havia uma cartaz enorme em que, em pintura, se simulava um bar, com gente sentada em bancos altos.

Tirei uma água fresca e, com cuidado, puxei um pouco a máscara e bebi a água toda. Quando reentrei na sala de baile reparei num vulto que parecia olhar na minha direcção. Misterioso. O vulto começou a vir como se viesse ter comigo. O meu coração disparado. Toda eu descompensada. Não sei se descompensada é a palavra certa. Aflita. Com medo. Prestes a cair num abismo.

O vulto abeirou-se. Baixou a cabeça, num elegante cumprimento. Acho que nem me mexi.

Depois pegou na minha mão e levou-a até ao lugar do seu coração. Eu estava enervada, nem sei se era suposto sentir as batidas, não senti, apenas senti o veludo do seu fato. Depois colocou a sua mão no meu coração. Mas, de facto, colocou a sua mão enluvada sobre o meu seio. Não sei se o meu coração disparou se parou.

Tive o discernimento de com a minha mão dar-lhe dois toques na sua, como que para dizer que já chegava, que tirasse dali a mão.

Puxou, então, por mim, enlaçou-me, começou a dançar comigo, eu enlaçada, eu nos seus braços. Depois parou. Eu ainda nos seus braços. Abraçou-me com força, como se toda a sua vida tivesse esperado por aquele abraço. Abracei também aquele vulto misterioso. Abracei-o como se me entregasse. Depois ele puxou a minha máscara um pouco para cima e fez o mesmo à dele. Beijámo-nos como se não mais pudéssemos deixar de estar juntos.

Depois ele abraçou-me e finalmente falou. Disse: 'Vamos. Venha conhecer a minha casa'. Era Tom. Sabia-o. Eu, ainda com a máscara posta, disse apenas: 'Lobo-lobinho'. Ele voltou a beijar-me. Disse-lhe que viesse no meu carro para irmos juntos. Pelo caminho, ele não parou de me olhar. Eu, de vez em quando dizia 'Lobo-lobinho' e abanava a cabeça, como se ainda não acreditasse. Ele, com aquela sua voz quente, dizia, 'Diana, a caçadora' ou, então, 'Diana, a protectora da caça'. Eu nada dizia. Ele perguntava: 'Qual é? Não é a mesma coisa'. E eu, incapaz de pensar, 'Não consigo pensar em proteger o que quer que seja ao pé de um lobo'. E ele 'Porquê? Já se rendeu? Sabe que o lobo a vai comer?' E eu: 'Não. É um lobo-lobinho, não é um lobo mau'. Ríamo-nos mas estávamos os dois tensos.

Uma casa cheia de livros, livros por todo o lado, livros novos e velhos, livros, livros. Ele acendeu o candeeiro sobre uma mesa pejada de livros. Ligou o computador. Disse-me: 'Veja'. Não precisava de ver. Era a nossa última conversa.

Na parede da frente, várias fotografias de Dindinha. Numas o corpo inteiro, nua, noutras só o rosto, um rosto irradiando sensualidade e beleza.


Vendo-me a olhar, ele disse com naturalidade, 'É linda, a Fred'. Beijei-o. Naquele momento eu era Diana. a caçadora, não a protectora. De resto, Dindinha não era nenhum exemplar de caça e, se fosse, seria tanto meu como dele.

Depois deixei que ele me despisse. Despi-o também. Devagar, conhecendo-nos, as mãos sobre a pele, devagar, devagar. Olhando-nos, tocando-nos. Devagar, devagar.


Sem máscaras, tratando-nos pelos nossos nomes, fomos apenas um homem e uma mulher que se conheciam de antes dos tempos e que, ali, aprendiam a materializar o seu amor. A dois. Dindinha era apenas uma imagem. Cada vez mais esbatida.



.... The end ...

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Este é o último episódio do folhetim Dindinha

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