quarta-feira, novembro 02, 2016

Ler


Estava com vontade de escrever sobre livros. Hoje, quando ia para o carro, pensei, como sempre penso, que devia escolher um livro para ler no caminho. Mas depois pensei que, com os miúdos no carro, certamente não deveria conseguir ler uma linha que fosse. E não. Fui o caminho quase todo a jogar o jogo do galo.

Para Coimbra levei o diário do Hein Semke. Fui lendo ao acaso. Não é tanto o que relatam pessoas assim que me cativa mas ver como pensam e sentem. Ou ver como parecem normais pessoas que o não são. Ou tentar perceber o que é a normalidade.

Se eu quiser referir os livros que mais me marcaram ficarei atarantada. Se disser de cabeça, irei cometer injustiças pois irei esquecer alguns. Para me pôr a fazer listas e short lists não tenho paciência. Também tenho a certeza que se dissesse hoje, a minha escolha seria diferente de outras anteriores.

Acho que o que lemos vai fazendo o seu caminho dentro de nós. Pode, por vezes, não se produzir logo a osmose mas, anos depois, a gente percebe que aquilo se diluiu e que ainda vive algures, inscrito nas nossas células.

Não percebo isto. Nem tento perceber para não perder a graça. 



Para exemplificar. 

Por exemplo, lembro-me de A Montanha Mágica. Eu lia aquilo e sentia que era coisa maior, maior do que eu poderia perceber. E, de vez em quando, lembro-me. Mas lembro-me do ambiente, do encantamento que me invadia. Não me lembro de nada em concreto. Lembro-me que mundos novos se abriam perante mim. A doença, a esperança pequenina, o alheamento, as alianças oportunistas, a miséria do corpo, o amor. As neblinas, o ar frio. Uma escrita sobre-humana.

E o Por quem os Sinos dobram. Também. Um fascínio. Lembro-me de andar com o livro por todo o lado porque em cada minuto livre eu tinha que o ler. O calor, o pó, o medo, a guerra, o amor, os recantos desconhecidos.

Ou os livros de Erich Maria Remarque. Eu entrava nos ambientes, eu experimentava o sabor da aguardente Calvados, o amor em tempo de guerra, eu sentia o desgosto das despedidas, eu sentia o empolgamento da bravura.


E um dia li A Mãe. E senti a dureza, a dureza extrema, a coragem, o amor, a vontade de mudar o rumo do destino. Mais tarde li que Gorki não era nada de especial como escritor. E, no entanto, quando o li, como aquele livro me impressionou.

Mas Dostoiévski. Quando um colega meu se desgraçou por causa do jogo, tanto que eu pensei nO Jogador. Quase sentia o frémito que ele devia sentir, o inegável apelo, o aproveitar a sorte, a vontade de reverter o azar, as vísceras ansiosas, só mais uma vez, só mais esta vez. Aquele livro levou-me pelas vielas, então para mim desconhecidas, da natureza humana. Mas não só O Jogador. Que escrita limpa a dele que nos pega pelo exacto nervo e nos leva linha a linha.

D. H. Lawrence. A Virgem e o Cigano. e os que tive que ler a seguir. A aventura feita carne e não só romance. O rubor e a paixão, a ferida de sangue, a loucura feita abismo, a atracção fatal.

Edgar Allen Poe que me assustava pelo insólito, pelo perigo, pelo alucinado, pelo diabólico, pela escrita cintilante.

Somerset Maugham, Graham Greene, Alberto Moravia, Beckett. Simenon. Ou Kundera.

Ou Gabriel Garcia Marquez. Ou Pedro Juan Gutierrez. Ou os muitos brasileiros que me trouxeram a doçura e a sensualidade da língua portuguesa; ou a pobreza digna e a graça das suas gentes, as do sertão, as das veredas, as da beira da praia.

Ou, descoberta recente, grande: John Williams.


Não posso continuar. Sou injusta deixando por dizer apenas para não me alongar. 

E os portugueses também. Ferreira de Castro, Aquilino, Torga. Eça. E Agustina de quem cada vez gosto mais. E Abelaira. Ou o Saramago de Ensaio sobre a Cegueira.

Injusto e absurdo misturar tudo. Não são comparáveis, bem sei. E faltam todos os outros.

Nem estou a falar da poesia. E, no entanto, a poesia estruturou a minha forma de sentir a escrita. 

Ler caoticamente, levada pela intuição ou por não sei o quê. Ler e não querer reter nada para partir sempre da linha de água para a próxima onda, sempre disposta a ser submersa. Sem padrões, sem escalas, sem saber de estilos, sem saber de nada senão que quero ser maravilhada -- senão não vale a pena.

Não sei se sou como sou pelo que li ou se li o que li por ser como sou. Talvez as duas coisas e muitas outras. 

Dos livros que hoje se publicam já poucos me tiram o chão, as paredes, o tecto, o ar, e me levam para outros mundos. Talvez por isso, salte de livro em livro, raramente me detendo sem respiração, raramente tomada no corpo e na alma pela escrita.


No entanto, por vezes encontro esse rasgo de génio em algumas coisas que leio em blogs. Quando penso no que, para mim, faz a diferença num blog sinto que é sobretudo o carácter da escrita. Mas não sei dizer o que é o carácter da escrita. Podia ter dito a alma da escrita. Qualquer coisa. Quelque chose. Na blogosfera portuguesa não há muita gente cuja escrita me seduza de forma continuada. Há muita vulgaridade, muita maria-vai-com-as-outras, muito mais-do-mesmo, muita pequena gente a querer fazer-se de original sem o ser. Mas depois há os outros. Os poucos outros. 
Os que caminham rente ao horizonte, os que consiguem desalinhar-se da vox populi, os que rasgam as águas e atravessam os improváveis caminhos da solidão, os que transportam a música e o perfume das palavras perfeitas. A esses eu procuro sempre, a esses eu leio com enorme prazer, com permanente surpresa. Posso, por vezes, não concordar com o que dizem, posso achar que têm uma atitude perante a vida que é diferente da minha ou que formataram a sua mente de uma forma que a mim me parece castradora, posso não me rever as suas opções. Mas tanto me faz. Lido bem com a diferença e até gosto de me sentir confrontada nas minhas opiniões ou atitudes. Mas se eu sentir aquele sopro meio humano, meio divino que se adivinha por detrás das palavras ou se sentir que as palavras atravessam o espaço para me agarrarem como um intangível abraço, então, aí, eu rendo-me.
Não vou agora aqui referir blogs que acompanho sempre com curiosidade e prazer porque o texto já vai para além de longo, mas posso dizer que, porque detecto uma densidade de texturas na escrita, não me é difícil supor que, quem os escreve, é gente que se oculta, que parece normal perante os outros e se mostra única aqui, no escurinho da blogosfera. Leio-os como leio o diário de Hein Semke ou o de Miró ou os apontamentos de Agustina ou de Yourcenar. Gente tocada por um dom que não tem nome.


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O Hallelujah é interpretado pelos Pentatonix

As fotografias foram feitas, esta segunda-feira, in heaven.

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E queiram agora seguir, se para aí estiverem virados, para A Festa dos Anjos
É uma festa de arromba e mete, até, um certo tigre que, por pouco, não veste Prada.

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2 comentários:

bea disse...

Eu diria que e muito ecléctica mas tem bom gosto nas leituras (dos autores que conheço, há vários que não li). E que escreve muito destramente. Talvez o percurso dos livros dentro de si tenha ajudado. Mas não será só isso.

P. disse...

Essa sua lista fez parte da minha escolha, em tempos. Também os li todos. Excepto esse recente John Williams. Quanto a Agustina, nunca a apreciei muito. Li-a, mas nunca me “agarrou”. Hoje, porém, já não leio quase nada de Literatura. Prefiro outras leituras, como ensaios sobre Arte, Escultura, História, Música Clássica, Antiguidade Clássica, Cosmologia, Filosofia, Economia, Sociologia, Política. Procuro outro tipo de informação cultural. Passei para outro tipo de interesses. Não compro um romance, ou um livro de Literatura, há muito tempo. Enfim, os interesses culturais não se discutem, são o que são. Opções de cada um. O importante é manter o interesse e gosto pela leitura. É isso que é essencial. Ainda este último fim-de-semana, quando fui até ao Campo Pequeno para a degustação de vinhos (e outras delícias que por ali se encontravam à disposição), lá estavam, logo à entrada, num expositor, dois livros magníficos, sobre o grande tema (pelo menos para mim e outros) que é o Vinho. Pena que os preços fossem elevados, para a maioria do público, entre os 50- 70 Euros. Mas, lá está, sendo um tema que me interessa, compro.
Bom resto de semana! Ao que parece com alguns chuviscos. Que grande chatice! Amanhã lá voltarei ao Chiado, que tanto aprecio, para um “almocinho” com uns amigos e dali, a seguir, dar um pulo a umas livrarias a ver o que por lá se pode comprar para ler!
Aqui há tempos, andando por ali, quase “choquei” com uma criatura que desprezo, um tal “Sérgio Sousa Pinto”, do PS.
P.Rufino