domingo, agosto 14, 2016

Um dia de calor in heaven com os segredos de Agustina e com figos, amoras e uma lua branca entre as árvores.




Um dia de calor de perdição. Digo que estou in heaven porque posso fazer tudo o que me apetece, porque a natureza que eu ajudei a acontecer superou todas as expectativas e agora o que eram árvores de tamanho de um palmo são árvores imensas que quase chegam até à lua branca que chega em pleno dia, porque pássaros, coelhos, cigarras e toda a bicharada fez daqui a sua casa, porque posso andar com ou sem roupa, com ou sem sapatos, sem horários, sem rotinas. Mas as temperaturas aqui não são amenas como no paraíso verdadeiro. Aqui são extremas, das mais altas do país. Em dias assim, a luz é intensa, o calor desmedido, e, até que chegue a aragem do fim do dia, a natureza parece renegar-nos.


De facto, durante o dia não se consegue estar na rua, as altas temperaturas amolecem o corpo, quase impedem a respiração.

Deitei-me, pois, na sala, os vidros fechados, as portadas semi-cerradas. Dormi, um sono imediato, denso. Acordei a custo, o calor toldando a consciência e derretendo a energia.

Depois de me ir refrescar, forcei-me a manter-me acordada. Pus-me a ler, deitada. Agustina, outra vez. Fama e Segredo na História de Portugal. Cada vez mais me fascina a escrita sumptuosa e desbragada desta mulher. Há uma liberdade quase orgânica na sua escrita, e não sei se orgânica é a palavra certa. Talvez devesse ter dito majestosa. Liberdade majestosa. Ou telúrica. Não sei. A escrita de Agustina é, isso sim, extraordinária. E tenho achado isso sobretudo em textos soltos, em ensaios, pequenas crónicas, mais do que achava em romances.


Por vezes, parece que o texto perde o sentido e se eleva para o mundo onde as palavras reinam por si mesmas, ainda que descontextualizadas. Outras vezes, as palavras enleiam-se a seduzem-se e esquecem o texto em que estavam e criam, só para elas, um contexto próprio. Leio-a com um prazer extremo. De vez em quando, fecho os olhos para que as palavras levem o seu tempo dentro de mim, para que escolham o caminho que querem percorrer.

Pensei em trazer aqui alguns excertos mas desisti. Acho que a escrita de Agustina vive da insolência, do desconcerto. Pequenos excertos não conseguem mostrar o golpe de asa, o salto, as pernas das palavras em volta do nosso corpo, a gargalhada louca, o sorriso escarninho, a luz destemperada.

Quando penso no que a filha disse, de que ela não quis médicos, de que parece que simplesmente se cansou das palavras, percebo bem.

Há um tal excesso de prazer naquelas suas páginas, uma tal torrente de infindáveis encadeamentos de palavras, que me parece natural que um dia Agustina tenha sentido que chegada estava a hora de se conceder um merecido descanso.

Quando o dia entardeceu, saí para o campo. Calor ainda, mas a suavidade da aragem já era uma carícia agradável de sentir.


Fui-me aos figos. Muitos ainda estão pequenos e verdes e outros passaram directamente desse estado para o de secos. Mas outros, não muitos, já ganharam tamanho, estão carnudos, doces. Ainda deixam os lábios um pouco ásperos, mas não faz mal. Deleitei-me com eles. As amoras já estão a ganhar cor e as que estavam negras e polpudas não me escaparam. Ando pelo meio das ervas, debaixo das figueiras - e como cheiram bem as figueiras - colho os frutos que como imediatamente, e sinto-me tão bem, tão bem, um tal prazer.


Depois, à hora de jantar, arranjámo-nos. Para o fim do dia, os campos em volta tornam-se suaves, quase azuis, e as minhas mãos sonham em poder acariciá-los como corpos amados.


Fotografo-os, uma e outra vez. O meu marido chama-me. Saímos.

Há uma tasca ao pé da bomba de gasolina da vila. Tem uma esplanada junto à estrada, uns toldos que deixam passar a aragem. Tem uma televisão lá dentro e outra cá fora. Futebol. Lá dentro estão os homens mais velhos. Cá fora os jovens. Só homens. Ficámos cá fora. Mandámos vir pratinhos de petiscos, bons como não os como em nenhum outro lugar. Bebidas frescas, uma cesta de pão. Iguarias perfeitas no meio do riso dos rapazes, do relato do futebol, de um ou outro carro que passa na estrada nacional. Sem pressa, degustando o prazer das coisas simples.

Era noite quando chegámos a casa, uma aragem já temperada com a frescura da noite e uma lua branca na qual leio palavras límpidas como o céu.

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Kahlil Gibran sobre o Prazer

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Lá em cima Sarah McKenzie interpreta "Moon River" 

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E, caso queiram abandonar os prazeres bucólicos e mergulhar com humor no espírito dos Jogos Olímpicos, desçam, por favor, até às polémicas do post seguinte.

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2 comentários:

Anónimo disse...

Um excelente texto, não ao nível da Agustina... Mas quase!

Um Jeito Manso disse...

Agradecida. Mas sei bem que não faço mais do que estar sentada no chão, num canto, olhando embevecida a escrita da grande Agustina.

Mas gostei de ler o seu comentário... :)