domingo, julho 17, 2016

O homem que viu o infinito




Há coisas difíceis de explicar. Se alguém souber explicar porque é que se sente atraído por outra pessoa, ou porque é que se emociona ao ouvir uma determinada música, ou porque é que fica tomado por dentro (como se o próprio corpo de rarefizesse) perante uma pintura, ou porque é que fica quase em êxtase perante uma certa paisagem, ou porque é que se sente tão estranhamente sereno dentro de uma qualquer igreja é porque nada do que sentiu foi desmedido, único.

A mim, que sou de sensações intensas, de emoções fáceis, extrovertida na manifestação dos meus sentimentos e pensamentos, acontece-me, por vezes, passar por situações extremas em que não há racionalidade, não há explicação, não há nada que possa ser traduzido por palavras normais ou lógicas comuns.

Com o tempo fui-me habituando a não tentar explicar algumas coisas. Sinto que para elas não há explicação ou que, a haver, ela não é deste mundo (e, sendo eu um ser racional e nada dado a esoterismos, quero, com isto, dizer que admito que há tanto por saber e descobrir que forçosamente algumas explicações pertencem ao conjunto de saberes que o futuro desvendará).

Acontece-me, por vezes, saber, de certeza absoluta, coisas que não tenho como explicar. Trabalhei com pessoas que acreditavam na minha intuição mas trabalhei também com um que é o meu oposto, um que tem que ver a explicação de a a z para poder aceitar a conclusão do que quer que seja. Eu a dizer-lhe que se devia fazer uma coisa qualquer porque a minha intuição assim o diz e ele, armado em meu educador, a explicar-me que as coisas não funcionam assim, que não podemos guiar-nos pela intuição mas pela lógica demonstrável. Um sofrimento para mim ter que lidar com pessoas assim.

Sempre fui muito de chegar à conclusão sem saber ou sem me interessar conhecer os passos intermédios. Quando estudava, acontecia ter a sensação de estar a responder ao acaso e, até, verdadeiramente incapaz de o fazer da maneira usual, passo a passo. 

E acontece-me também em relação a algumas pessoas: pode uma pessoa parecer o maior anormal, o maior traste, um ser detestável e, no entanto, vá lá eu ser capaz de explicar porquê, eu ver ali uma pessoa boa, uma pessoa de quem tenho vontade de me aproximar.

Ou o oposto: toda a gente estar embevecida perante um qualquer alguém e eu olhar e ver ali um oportunista, um saco cheio de nada. E não ser capaz de explicar porque acho isso. 

Ou uma obra de arte: emocionar-me perante ela como se estivesse perante um anjo e toda a gente olhar incrédula sem ver ali ponta de graça. E eu incapaz de explicar o efeito de tal absoluta rendição.

Da matemática, esta atração, esta verdadeira atracção. Nem por isto ou por aquilo em especial. Mais pela estética da lógica subjacente ao seu entendimento, pela suprema beleza dos conceitos em abstracto.
E já esquecida de tudo, incapaz de trabalhar com logaritmos ou de fazer integrais, longe, longe de tudo isso, como se nunca tivesse sabido.
E, no entanto, ainda a sensação de perplexidade amorosa perante uma construção abstracta, elegante, de uma beleza impoluta. Um fascínio para mim, a matemática. Mesmo que não compreenda. Ou melhor, especialmente se não compreender.

E a memória do desagrado das aulas, das colegas muito estudiosas, dos professores burocratas, dos exercícios repetitivos. Tudo parecia conspirar contra uma beleza que se queria poética, luminosa, inexplicável porque muito pura, divina. 

E a memória da sensação aguda de vórtice, de atracção para um momento de extremo prazer quando a mente era conduzida para a evidência de uma realidade abstracta de rara beleza, uma teoria, a demonstração de que não há realidades complexas mas apenas realidades que ainda não atingiram o estado da perfeição que é sempre sinónimo de simplicidade.

Acontecia-me ir quase em transe, arrepiada, desbravando so caminhos da minha própria mente. Resolver equações, fascínio grande. Começar com elas bem complexas, cheias de indecifráveis enigmas e olhar e começar a ver a aresta onde a lâminha afiada do desbaste iria começar a poda e, aos poucos, a singeleza da evidência a aparecer, a convidar à descoberta final.  A solução. 

Ou um problema complexo com mil restrições, mil variáveis, mil constantes, insolúvel, para esquecer. E eu, com a calma dos perdadores, começar a sentir o nervo do problema, o latejar da resistência, mas prosseguir com a frieza de quem sabe que vai conseguir e, como que por magia, começar a descobrir entropias, a detectar redundâncias, a desmontar falsidades, a acabar com elas, e desbastar, desbastar e, por fim, já o sol a despontar por detrás de um horizonte límpido e encontrar a solução e sempre uma solução tão simples, tão elegantemente simples.


Ou encontrar padrões, testá-los, validá-los, modelizar a vida, reproduzi-la, vê-la na sua essência, simples, bela, quase reprodutível.

E o desconhecido para o qual caminhamos e de onde viémos, o mais e o menos infinito, esses territórios habitado por números imaginários, e que explicam o que não existe, a anti-matéria, os buracos negros que sugam a matéria e de onde se evola uma música subtil, sinuosa e imaterial.

Por isso, ao saber deste filme, O homem que viu o infinito, para ele acorri sem hesitar. Baseado na história verídica do matemático autodidacta Srinivasa Ramanujan, o filme é uma maravilha para quem gosta da matemática daquela forma inexplicável com que se gosta de uma poesia, de uma flor, de uma outra pessoa.


Muito belo, muito belo. Muito comovente. Por diversas vezes chorei. O meu marido, no fim, admirou-se, diz que estou cada vez mais maluca, que não havia ali nada para se chorar. Mas havia. Momentos tristes, para chorar, e momentos emocionantes, que me deram vontade de chorar. Ou que me arrepiaram. 

E Jeremy Irons no papel do matemático G.H. Hardy, o amigo que não sabe perceber os afectos, o protector que sabe disinguir o génio, magnífico, aquela voz, aquela contenção, aquela arte que parece coisa espontânea.

O HOMEM QUE VIU O INFINITO - Trailer Oficial Legendado (Portugal)




Uma benção para quem ama a matemática, este filme caído do céu.

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As imagens que usei mostram diversas formas, em diferentes épocas, de arte indiana.
Lá em cima, Anoushka Shankar interpreta, com Alev Lenz, Land Of Gold.

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E, caso vos apeteça ver as fotografias do calor in heaven, queiram, por favor, descer até ao post já a seguir.

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4 comentários:

bea disse...

A matemática é um dos meus vários muitos pontos fracos. Mas até acho que também gostaria de ver o filme, o título é sugestivo qb:). Tenho fascínio por gente que tem as coisas na cabeça e não sabe explicar como. Mas tem. A mente humana é o aliciante mais incompreensível que existe. Um mistério. E depois, histórias com amizade dentro são bonitas. De ver. E de sonhar. A visão atomiza, é circunscrita e temporal; o sonho, não.

Isabel disse...

Ainda não tinha ouvido falar do filme, mas vou ficar atenta para não perder, se aqui vier.
Sempre gostei de matemática e tinha facilidade em aprender, embora "no meu tempo" os professores não nos cativassem para ela.
Hoje, tento fazer ver aos meus alunos, como a matemática pode ser interessante, e precisamente, como tanto na matemática é cheio de interessantes padrões, lógicos. Basta estar atento para os descobrir.

Boa noite:)

Um Jeito Manso disse...

Olá Bea,

Este seu comentário é uma maravilha. Se um dia escrever sobre sonho e ainda der com ele, venho aqui repescá-lo para o citar no texto. Very good.

Mas, olhe Bea, mesmo não morrendo de amores pela matemática, se puder veja o filme. é um filme em contra-corrente. Muito bom.

Um Jeito Manso disse...

Olá elegante Isabel,

Gostei de a ver lá nos passadiços do Paiva. E não é muito bonito aquilo?

Dava para exemplificar muitos cálculos aritméticos com os seus alunos... E a Isabel deve ser uma professora que sabe cativar os seus meninos.

Gostei muito de a ver por aqui.

Beijinhos!