segunda-feira, maio 23, 2016

Eu também sou uma mulher cheia de caminhos




Hoje aquele a quem eu, até ele ser tão grande, chamava aqui ex-bebé perguntou-me se eu sabia falar brasileiro. Disse-lhe que sim, que brasileiro é português só que dito de uma forma engraçada. Pediu que exemplificasse. Tentei mas não foi fácil, porque logo já eu estava a falar usando vocábulos como neném ou babá, que careciam de explicação. E a verdade é que, ao esforçar-me por falar com paladar brasileiro, parece que me desfocava e, passado pouco tempo, já me faltava assunto. E, para falar de assuntos correntes, não me dava jeito nenhum falar em brasileiro. O mais crescido, saíu em minha ajuda.

E, no entanto, e já para não falar nas telenovelas brasileiras que dantes, quando era novidade, não perdia, há quanto tempo eu me habituei a ler em brasileiro. E gosto. Tem uma graça que acrescenta tempero à língua, parece que qualquer história ganha logo um dançarolar que anima por dentro o corpo de quem lê ou ouve.

Andei o dia todo por fora, com uns e outros, a animação habitual, tudo gente que não se adensa nos pesares da vida, antes seguindo em frente com risos, humor, descontruindo todas poses de bom comportamento. O meu pai, hoje tranquilo e meio dormindo no meio do reboliço, o meu tio sempre sorridente, a minha mãe toda jovem, vestida numa de navy, alegre no meio de tanta efusividade e bem humorança, a minha filha bonita e alegre, os pimentinhas comilões, brincalhões, o meu marido a ver futebol como se nada se passasse, eu a fotografar e a degustar os bons momentos.

Claro que, no meio, tenho momentos em que tenho que me ausentar da situação para não ganhar stress nem fazer figuras tristes. 

Exemplifico. 

Comprámos umas chuteiras para o dito ex-bebé. Há uns meses, o avô prometeu-lhe umas chuteiras quando ele passasse a ser capaz de fazer uma determinada coisa. E nem mais se lembrou disso. Eu, se ouvi, nem registei. Pois bem. Esta semana, o menino (que já fez cinco anos e está enorme) conseguiu ultrapassar a dita meta e apareceu-me ao telefone, com ar pesaroso: 'Ó Tá, já consegui fazer e o avô ainda não deu-me as chuteiras...'. Não sabia sequer de que estava ele a falar. O irmão, ao lado, dizia, 'Tá, iguais às do Rui Patrício'. Pensei que eram protecções para as pernas. Mas depois ouvi 'com pitons'. Então percebi que eram ténis para chutar - claro. Quando relatei ao meu marido, lembrou-se: 'Eh pá, pois foi, mas há quantos meses foi isso... Eh pá... nem me lembrava. Temos que ir comprar as chuteiras para o puto'. Lá fomos. A mãe disse o 29 mas, como cresce todos os dias, decidimos que seria melhor o tamanho 30. Hoje, na casa da bisavó, ao experimentá-las, achou que lhe apertavam. Dissemos: 'Pronto, não tem problema, vem connosco à Decathlon, escolhe, prova. Depois levamo-los a casa'. Que me lembre é a segunda vez que vamos só os dois com eles os dois à Decathlon, coisa que, para eles, é melhor que a Eurodisney. 

Senhores!

Mal saem do carro, vão a correr direitos às tendas que estão em exposição cá fora, e andam de tenda em tenda, depois escondem-se lá nos compartimentos, e ali ando eu e o meu marido a ver se não os perdemos de vista, com aqueles dois escapulindo-se de umas para outras -- e se são uma data delas de todo o tamanho e feitio.

Para saírem de lá, teve o avô que os içar e levá-los pelo braço, um de cada lado. Depois, mal entram naquela big loja, desatam a correr, primeiro diireito aos caixotes de rede da entrada em que há mochilas, bolas, apetrechos de cada cor e finalidade. Dizemos 'Esqueçam, viemos cá só para trocar as chuteiras, vamos!'. Então, contrariados, lá saem dali mas, logo se esquecem, e desatam a correr, cada um direito a uma bicicleta, e desatam a pedalar por ali afora. Quando queremos que larguem as bicicletas no sítio certo, mal desmontam numa, logo se montam noutra e pedalam ao desafio, a grande velocidade. E ali ficamos nós a olhar para eles, porque não vamos pôr-nos a correr atrás deles ou aos gritos. Um desatino. Até que o avô os intercepta, os iça, e à força os leva dali para fora.

Então desatam a correr e vão para as bicicletas de ginásio e montam numa, noutra, noutra, cada um para seu lado.

Nessas alturas apetece-me apanhá-los, nem que seja à força, pôr-lhes uma trela e levá-los à rédea curta.

Até que o avô os ameaça e lá se reintroduz o tema: 'Mais vale irmos já para a zona do futebol (antes que sejamos expulsos)' e logo eles perguntam se é onde há montes de bolas e balizas e aí vão eles a correr, e logo se põem a jogar futebol a sério, grandes remates, grandes defesas.

Nessa altura, deixo o meu marido a orientar a coisa -- e reparo que ele já está com ar a caminho do esvaído -- e vou à procura de bonés, de que eles estão com falta.

Como a loja é imensa e há bonés em vários lugares, fui calmamente (para descansar a cabeça) e fiz uma pré selecção. Ao fim de algum tempo reaproximei-me: um fazia defesas atirando-se ao chão, o outro rematava como se estivesse a jogar a final da Taça, o meu marido fazia de conta que não os conhecia embora, claro, estivesse de olho. Levava eu 5 bonés de feitios diferentes e cores diferentes e queria que optassem pelo modelo e pela cor, que eu logo ia ver se encontrava o modelo na cor pretendida. Qual quê? De súbito, logo cada um me tirou um boné das mãos, o pôs na cabeça e se recusou a provar qualquer outro. Eu bem queria ver se lhes estava bom mas no way: 'Pára, Tá', como se eu tivesse entrado em campo para lhes pôr o boné, talvez para não apanharem sol, mas, cumprido o desiderato, devia era pôr-me fora do campo para não interromper as afincadas jogadas. 

Finalmente, nem sei como, lá fomos para as chuteiras. Já não queria da cor das do Rui Patrício, preferiu pretas com riscas em cinza prateado. E as únicas que disse que lhe ficavam bem eram o 32. Não percebo se da semana passada para este domingo lhe cresceu o pé de 29 para 32, se quê. Mas dúvidas metafísicas não têm lugar nestas situações. Vieram as 32.

O caminho até à caixa e à saída foi a mesma odisseia. Corridas de bicicleta e tudo. Saíram de lá içados pelo braço, como se o avô fosse um segurança a expulsar dois meliantes.

Cá fora, mal os largou desataram, de novo, a correr para as tendas. Chego a este ponto, já sem reagir. Parece que se me baixa a tensão, fico quase sem acção. E dá-me sede, acho que estas coisas me desidratam. E fico também com uma espécie de impaciência em que, por mim, me deitava numa espreguiçadeira de exposição ali mesmo ao pé das tendas e eles que brincassem até se fartarem. Só que já passava das sete e meia da tarde e já estava a pôr-se frio.

O avô, meio furioso (mas a fúria dele com os netos é mais do que relativa), acocorou-se pela tenda adentro onde os dois pestinhas se tinham escondido num compartimento fechado ao fundo, abriu o fecho, e, de gatas, puxou-os dali para fora. As figuras que uma pessoa faz. Não há explicação. E, uma vez cá fora, lá os levou, de novo içados pelos braços, até dentro do carro.

Depois, no carro, apanhámos o relato do prolongamento da final e a ida para penaltis. Entusiasmo! Aí, à chegada, não queriam sair do carro para ficarem a ouvir o relato até ao fim. Lá os convencemos que, em casa, viam melhor, na televisão. E, então, lá saíram a correr do carro em direcção a casa.

Quando nos vimos a caminho de casa, em silêncio, já o Braga tinha ganho, deu-me um sono avassalador. Mas dali ainda fomos a casa do outro lado da descendência e lá houve mais jogo de futebol; mas, enfim, dado o espaço mais confinado e dado que uma menina é sempre um factor de estabilização, foi pacífico. Além disso, foi rápido.

Seja como for, cheguei a casa tarde e estafada. A primeira coisa que fiz, depois de pôr a máquina de roupa a lavar, foi cortar o cabelo. Um pedação, que um bom corte de cabelo tira-me muita canseira de cima. Depois um belo banho. A seguir um jantar ligeiro, depois ainda passei alguma roupa a ferro, estendi a meias a roupa, que aqui em casa funcionamos em equipa, e mais algumas arrumações. 

E já estive a tratar das nails e agora estou aqui no sofá, reclinada, meio a dormir, cheia de preguiça.

Já passei os olhos pelas novidades que são nenhumas e tudo coisa sem graça e, do que li, o que me me chamou a atenção foi um texto muito engraçado -- em brasileiro, justamente. Chama-se: 'Não adianta limpar os pés se vai pisar meu coração' e foi escrito por Eberth Vêncio, cujo nome sem sei se é nome mesmo se é invenção de um dia de criatividade aguda.

Transcrevo apenas uns excertos porque isto hoje já está para além de longo, mas o artigo todo não deverá ser perdido porque é gostoso mesmo.


Adão foi o primeiro. Mordeu-me a maçã do rosto. Então, quebrei-lhe as costelas que ainda restavam usando o mesmo fórceps com que fui extirpada do seu tórax de macho alfa-dominante. Por justa causa — eu reconheço — fomos expulsos do Paraíso (Motel Paraíso, 666 Jardim do Éden — Cidade do Pecado). Não seja besta. Numerologia não me assusta. Babaquice, sim. Começava ali a minha saga em busca de um amor que valesse a pena. Eu não me dispunha a ser uma espécie de mulher objeto, sujeita a homens abjetos que me colocassem num pedestal, numa estante ou para desfilar montada numa glande. Eu cagava pra eles. Daquele dia em diante, ao invés de ser caça, quem caçava era eu.

Ayrton, por exemplo, era um sonhador, do jeito que eu gostava. Aos domingos, pilotava foguetes para Marte, adorava as minhas curvas, a minha entrega, a minha arte. Vangloriava-se em dizer que dirigia muito melhor quando a pista estava molhada. Então, tascava-me uma chuva de beijos, sem medo de derrapar sobre as estrelas da Via Láctea. (...)

Cristóvão veio com a seguinte falácia: se tinha descoberto a América, seria moleza descobrir, aportar no meu Ponto G. Eu não concebia possuir uma cartilha para otários entre as coxas. Aliás, sob estímulos cuidadosos, cada centímetro da minha pele urraria até ficar rouco. Rapidamente, saquei que o sujeito era uma espécie de aventureiro, um analfabeto afetivo que não conseguiria colocar sequer um de seus ovos em pé sobre a mesa. Vazei. Deixei-o à deriva num mar de lágrimas. Cabe aqui um adendo. Aliás, vou além disso, farei uma advertência: Senhores do Ministério, eu faço mal à saúde dos calhordas. Os homens fúteis, quando caem por mim, choram até desidratar. Eu não me importo, não sou a mãe deles. Eu sou uma mulher simples que se alimenta de amor e carinho. É só isso.

E por falar em fome e sede, dei a Cesar o que não era de Cesar, então, ele retribuiu tocando fogo na cama. Oferecia-me denários de prata em rituais de idolatria. Confesso que achava aquilo um exagero. Ele pensava que eu fosse uma espécie de deusa em busca de reconhecimento. Não, eu não era. Eu era uma mulher cheia de caminhos. (...)

Sócrates foi um namorado culto, inteligente, um verdadeiro sábio que passava a vida a pensar, fatigando os neurônios ao analisar o comportamento humano. Certa noite, sob as estrelas, enquanto acendíamos vagalumes com fagulhas-de-olhar, perguntei se o nosso amor duraria para sempre, mas ele fez assim com os ombros e disse que só sabia que nada sabia. Achei aquilo o máximo. Beijei-o com ternura e fé. Eu gostava de homens mais velhos. Depois de Vinícius — que me amou eternamente até o último sarau de poesia em Copacabana — foi o amante mais atento que já pisou meu coração.

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E porque muitos, muitos são mesmo os meus caminhos, que entre o Grupo Corpo para que a jornada de hoje se complete.

Mortal Loucura

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Lá em cima é a Felicidade segundo Vinicius, Toquinho e Maria Creuza.

As fotografias que escolhi não sei se têm alguma coisa a ver, acho que talvez tenham mas se calhar é porque estou praticamente a dormir. São da autoria da professora polaca Anna Rozwadowska que gosta de inventar e costurar fatos para os filhos e que, a seguir, os fotografa.

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Claro que tenho lido e apreciado e me tenho sentido agradecida por todos os comentários e mails mas, dada a minha agenda preenchida, não tive possibilidade de lhes responder e, agora que me deu para me pôr mais à fresca a curtir os ares prazerosos da primavera, também já não consigo. É tarde e estou a dormir. Não levem a mal. Obrigada a todos e aceitem, por favor, as minhas desculpas.
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E desejo-vos, meus Caros Leitores, uma bela semana a começar já por esta segunda-feira.
Be happy!

1 comentário:

Rosa Pinto disse...

Tão bom o que li.