E, de repente, Pedro envelheceu mil anos. Caíu sobre uma cadeira, a cabeça apoiada na mão, a mão cobrindo-lhe parte do rosto.
Clara não sabia o que fazer. Inquiriu: 'Tinha ali muita coisa?'. Ele respondeu, um fio de voz: 'Tudo'. Ela não sabia o que era tudo mas admitiu que fosse muito. Pensou: dinheiro vivo, ouro, jóias, qualquer coisa assim. Perguntou-lhe: 'Mas não seria de se chamar a polícia, Pedro?'. Ele ficou calado. depois, muito baixo, disse: 'Não está arrombado'.
Então Clara percebeu que parte daquela prostração talvez resultasse de ele pensar que era alguém da casa. Perguntou-lhe: 'Mas quem é que tinha o segredo ou a chave?'.
Ele apontou e disse, a garganta seca, enervado, quase sem voz: 'O cofre não se vê, está disfarçado atrás de uma estante falsa da sala. Aqui, deste lado, abre dentro daquele armário que está agora ali ao lado. Sabiam o carpinteiro e o encadernador mas já morreram. E sei eu, os meus pais e os meus irmãos. Mas mudamos o código todos os meses. O meu pai, porque é o nosso pai, o chefe da família, e eu, pelas funções que tenho, sabemos sempre. E depois há uma terceira pessoa, rotativamente. Todos os meses é um dos meus irmãos. Só nós três, a cada mês, é que sabemos. Dantes era também a minha mãe mas já não quer. Desde há dois dias é o meu irmão Filipe'.
Ficaram em silêncio. Clara pôs-lhe uma mão no ombro. Ele olhou para ela: 'Percebe...?'. Ela sentiu muita pena dele. 'E o Pedro desconfia do seu irmão...?'. Ele encolheu os ombros, infeliz. Depois, quase em surdina, disse: 'Não sei. Não posso dizer. Mas pode ser o meu pai'. E tapou os olhos, a testa, como se sentisse vergonha.
Clara disse: 'Mas, Pedro, o que estava lá dentro, era património da família, é isso? De todos?'
Ele assentiu. Ela disse: 'Mas, Pedro, o seu pai não é o guardião? Ia lá fazer uma coisa dessas...?'
Ele assentiu. Ela disse: 'Mas, Pedro, o seu pai não é o guardião? Ia lá fazer uma coisa dessas...?'
Ele voltou a encolher ao de leve os ombros 'Não sei...' e com a mão mexia na testa, no cabelo, como se quisesse encontrar nesse gesto o conforto que lhe faltava. Clara pensou que era tarde, que devia ir mas que não podia deixá-lo assim. Perguntou-lhe 'Pedro, quer que fique para o ajudar? Ou prefere ficar sozinho? Diga, esteja à vontade.'
Ele disse: 'Peço tanta desculpa, Clara, nunca imaginei que uma coisa destas me pudesse acontecer. Nunca pensei passar por isto e logo consigo aqui. Não quero maçar, Clara, deixe que eu já penso no que hei-de fazer. Se quiser ir, vá.' Ela perguntou: 'Mas fica bem, Pedro?'.
Ele olhou em volta e disse: 'A esta hora nem sei se isto ainda pertence à família...'. Clara olhou-o e viu a sua aflição. 'Mas como, Pedro? Como poderia isso ser...?'. Ele em silêncio, numa inquietação, numa aflição, numa tristeza. 'Vá, Pedro, vá. Tenha calma, Pedro.'.
Então, inesperadamente, ele afundou o rosto entre as mãos e começou a chorar. Ela ajoelhou-se ao lado do cadeirão, fez-lhe festas no cabelo, 'Pedro... então... Pedro... O que está para aí a pensar?'
Ele chorava como uma criança. Depois levantou-se, pegou-lhe na mão, levou-a até à biblioteca. 'E se isto já não nos pertence...? O que faríamos...?'.
Clara manteve-se de mão dada com ele: 'Credo, Pedro, que ideia. Lá porque desapareceram coisas do cofre já pensa que ficou sem a casa...?' Ele voltou a tapar o rosto com a mão e a voz chorando-lhe 'Temo que possa não ser só esta casa, Clara. Temo tanto. Tanto'. E deixou-se cair de novo num cadeirão.
'Olhe, Pedro, vá lá, acalme-se, se calhar não é nada disso, Pedro. Mas não é melhor ligar a alguém? Fale com o seu pai. Ou com o seu irmão. Se calhar há uma explicação, vai ver que não é nada disso. Vá. Ligue. acalme-se'
Ele olhou-a, olhar vazio. Não parecia a mesma pessoa que há pouco estava tão descontraído e feliz.
'Não. Tenho que pensar. Foi um deles. Vou falar ao meu advogado. Mas o meu advogado é o da família. Sei lá se é de confiança. Tenho que falar a um outro. Temo, sabe. Temo o que aí vem. Eu andava a desconfiar. Mas se for é tão grave, Clara, tão grave, tão grave.'
'Mas pode ter perdido o quê? O que é tudo?'
Pedro, levantou-se, encostou a cabeça à janela, já era de noite e ele, de repente um velho, e, ainda tentando esboçar um sorriso, disse: 'Tudo é tudo, Clara. E só espero que não seja também a liberdade...'
'Que me assusta, Pedro. Ligue ao advogado. Eu fico aqui consigo.'. Depois telefonou para casa e contou que tinha surgido um contratempo.
'Não. Tenho que pensar. Foi um deles. Vou falar ao meu advogado. Mas o meu advogado é o da família. Sei lá se é de confiança. Tenho que falar a um outro. Temo, sabe. Temo o que aí vem. Eu andava a desconfiar. Mas se for é tão grave, Clara, tão grave, tão grave.'
'Mas pode ter perdido o quê? O que é tudo?'
Pedro, levantou-se, encostou a cabeça à janela, já era de noite e ele, de repente um velho, e, ainda tentando esboçar um sorriso, disse: 'Tudo é tudo, Clara. E só espero que não seja também a liberdade...'
'Que me assusta, Pedro. Ligue ao advogado. Eu fico aqui consigo.'. Depois telefonou para casa e contou que tinha surgido um contratempo.
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Este é o terceiro episódio de uma história que ainda não tem nome porque ainda não a conheço. Vem no seguimento do 2º capítulo a que dei o nome de A mulher que também gosta que lhe falem de livros.
O primeiro capítulo era A mulher que gosta de lhe falem de árvores.
A história segue no 4º capítulo, 'Bater no fundo'.
A história segue no 4º capítulo, 'Bater no fundo'.
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Lá em cima era o Nocturno Nº 20 de Chopin. Aqui em baixo é Stacey Kent interpretando You've got a friend e James Taylor.
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Entretanto, para uma coisa nos antípodas -- o Queria-ser-Primeiro-Ministro e Fazer-se-passar-por-Economista José Gomes Ferreira e a sua caça aos gambozinhos do Plano B (para a qual o António Costa parece ter tido uma paciência de santo -- é descer até ao post que se segue.
4 comentários:
Este Nocturno nº 20 de Chopin é uma maravilha! Chopin, o poeta do piano, para quem o piano era a sua absoluta “raison d’être”. Não escreveu sinfonias, nem óperas, nem ballets, muito pouca música da câmara e nenhuma música sacra, ou de igreja. Aquilo que lhe importava era compor música para piano. Tão só. E aí foi excepcional. Quando morreu, com apenas 39 anos, teve um magnífico funeral e foi enterrado no Pére Lachaise, ao lado do seu amigo, Bellini. E o coração foi enviado para Varsóvia e colocado na Igreja de Stª Cruz. Haveria muito a dizer sobre esse grande compositor, de uma sensibilidade única, mas fica para outra ocasião.
P.Rufino
PS: um outro excelente compositor, que se lhe seguiu, Brahms, teve uma vida igualmente muito curiosa e interessante, embora bem diferente (e até bem divertida) da de Chopin. E deixou-nos igualmente obras nótaveis. Relevo uma delas, música de câmara, Violino Sonata nº 3.
Para si, gosto muito de a ler. :-) https://www.youtube.com/watch?v=a8CJf868pAA
Caro P. Rufino,
Usei a sua excelente sugestão no episódio seguinte. Encaixou como se estivesse à espera que ma aconselhasse.
Muito obrigada.
Olá Caro Lúcio Ferro,
Agradeço o seu presente. Estive a ver e a ouvir e gostei. E fico contente que goste de me ler. Espero nunca desiludir.
Um bom domingo para si!
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