quarta-feira, maio 11, 2016

A mulher que gosta que lhe falem de árvores


Se lhe perguntassem no que estava a pensar quando entrou naquela casa, diria que não fazia ideia. Muito menos saberia responder à pergunta óbvia.

Simplesmente estava a entrar na casa onde alguém lhe sugerira que fosse naquele dia.

Quando bateu à porta ainda pensou, por breves instantes, o que responderia se lhe perguntassem o que pretendia. Mas não teve tempo de tentar encontrar a resposta.



A grande porta abriu-se automaticamente e ela entrou. Estava num pátio interior. À esquerda e à direita duas portas abertas, cada uma delas dando para um corredor que, de certa forma pareciam fazer parte de dois estreitos braços que circundavam o pátio. Em frente, uma escada de pedra. Ao fundo, por detrás da escadaria, uma parede coberta por heras e de onde, do que pareciam ser aberturas, pendiam enormes fetos.

Começou a chover ao de leve e ela olhou em volta, sem saber bem onde se dirigir. Reparou então que, num recanto, havia um telheiro sob o qual havia um largo e comprido banco de pedra. À frente um outro canteiro de fetos quase encobria aquele espaço. Sentou-se. Sentia-se abrigada, tranquila, sem qualquer sombra de inquietação ou, sequer, curiosidade. Não fazia a mínima ideia de que casa era aquela nem quem é que lá estaria. Em casa não tinha dito nada até porque de véspera ou de manhã ainda não tinha resolvido ir. No emprego, antes de sair para almoço disse que precisava de tirar a tarde de férias. Portanto, não dissera a ninguém onde vinha. Noutras circunstâncias ter-se-ia precavido, arranjado maneira de ir com companhia ou, pelo menos, avisado para o caso de, se alguma coisa corresse mal, saberem onde procurá-la. Mas não tomou quaisquer cuidados.

Foi olhando em volta. Havia uma laranjeira florida, o perfume era intenso. Por trás da casa, e não percebeu se fazia parte do terreno, havia uma árvores muito altas que não reconheceu.

Havia, no pátio, junto às paredes laterais, uns vasos de pedra muito grandes com árvores de pequeno porte floridas. Os pássaros cantavam muito alto mas não viu nenhum.

Encostou a cabeça à parede, fechou os olhos e deixou-se ficar a aspirar os aromas, a sentir a frescura do ar molhado, o canto dos pássaros. Talvez tenha adormecido.

Não sabe quanto tempo depois, ouviu um som que não reconheceu, umas pancadas, mas, logo depois, ouviu o barulho da porta a ranger, a abrir-se. Manteve-se serena, sem qualquer expectativa.

Viu que entrava um homem que igualmente se detinha, olhando em volta. Ficou um bocado no meio do pátio. A chuva tinha parado. Olhava as escadas, depois olhou o telemóvel, depois deu alguns passos em volta. Depois, devagar, começou a subir as escadas, hesitante.

Ela não fazia a mínima ideia de quem ele era mas não sentiu curiosidade.

Ouviu que o telefone lhe tocava na carteira mas não atendeu. Pouco depois, de novo. Nem sequer viu quem era. 

Algum tempo depois, ocorreu-lhe que não deveria ficar ali até tarde demais. Por coincidência, nessa altura, começou a ouvir um canto. A Norma? Tentou perceber mas os seus conhecimentos musicais não eram famosos. Então, sem pensar, levantou-se e dirigiu-se às escadas. Depois das escadas, um varandim de pedra. Olhou em volta. Não se via para fora da casa, os muros e as árvores envolviam-na. Viu, lá em baixo, o abrigo onde tinha estado sentada.

Ao fundo, uma grande porta de madeira. Experimentou empurrar. Estava fechada. Deu a volta à argola que servia de puxador. Abriu. A música mais audível. Foi entrando.

Um corredor, uma grande sala, jarrões de porcelana, grandes sofás de veludo, tapeçarias, grandes quadros, talvez retratos de família, um relógio de pé, um piano, outro corredor, outra sala, uma enorme lareira, uma mesa de jogo, cadeiras em volta, mais sofás. Cortinados de veludo e renda. Outra sala. Olhou em volta, pensou que queria ver de onde vinha a música.

Estava mais próxima. Foi andando. 

Quando chegou à sala de onde vinha a música, uma sala com as paredes forrada de papel claro, com uns curiosos panejamentos no tecto e tapetes sobre tapetes, dirigiu-se a um cadeirão para se sentar.

Quando se sentou, reparou que, em frente, num sofá, estava o homem: deitado, a cabeça sobre uma almofada, os óculos em cima do peito, de meias, os sapatos tombados no chão. Quando a viu, ele, sobressaltado, deu um salto. Embaraçado, colocou os óculos, tentou calçar-se sem olhar para os pés. Ela permaneceu sentada, sorrindo, olhando para aquela atrapalhação.

Já calçado, ele disse: ‘Não sei quem é’.

Ela, com ar levemente irónico, disse: ‘Eu também não sei quem você é’.

Ele, então, disse em tom de desafio: ‘Mas eu talvez seja capaz de adivinhar’.

Ela sorriu: ‘Adivinhar quem eu sou...? Será…?’.

E ele, ‘Acho que sim’.

E ela ‘Não sei. Para isso, teria eu que me deixar adivinhar e não sei se quero’.

Ele sorriu. ‘Está certo’. Depois de uma pausa, disse: ‘Já pensava que não vinha’.

Ela: ‘Já cá estou quase desde a hora de almoço. Estive a dormir a sesta lá em baixo’.

Ele arqueou as sobrancelhas, admirado: ‘Desculpe…? Como…?’

Ela disse: ‘Daqui a nada já lhe mostro o que elegi como boudoir para o meu sono de beleza’.

Ele sorriu, ar intrigado: ‘Ah sim…? Está certo. A senhora manda. Olhe, permita: toma alguma coisa?’. Ela riu de novo. Ele perguntou: ‘O que foi?’

Ela riu, abanou a cabeça, ‘Nada’, mas o sorriso era malicioso. Respondeu antes: ‘Chá. Pode ser?’

Ele disse: ‘Já lhe disse: a senhora manda.’. Chegou junto a uma parede e, aproximando-se de uma grelha, puxou um fio e disse: ‘Um chá e uma imperial, se faz favor’. Ela riu-se. Da parede saíu um fio de voz. Ele perguntou-lhe então: ‘Perguntam-me que chá prefere’.

Ela respondeu: ‘Qualquer. Ou chá ou infusão, qualquer coisa. Jasmim, cidreira, lúcia-lima’.

Ele riu ‘Não é esquisita’.

Ela disse: ‘Sou, sou. Muito. Mas não com o chá’.

Ele, sorrindo, disse para o intercomunicador. ‘De flor de laranjeira’.

Ela deu uma leve gargalhada ‘Perfeito. Condiz comigo.’

Ele maliciou: ‘Isso ainda havemos de ver’. 

Quando chegou uma empregada, fardada a preceito, com avental plissado em branco, estavam eles de pé, à janela, ele a falar-lhe das árvores, ela a ouvir atentamente. Sempre tinha gostado que lhe falassem de árvores.

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Lá em cima Renée Fleming interpreta (no Palácio dos Czares em Saint Petersburg) a Casta Diva da ópera Norma de Bellini. 

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E caso vos apeteça conhecer um pouco do livro que tão descaradamente me tentou esta terça-feira queiram, por favor, descer até ao post que se segue. Um livro surpreendente que muito vivamente recomendo.


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